Silvio estava dormindo quando escutou o celular tocar. Telefone não toca no meio da noite trazendo notícias de saúde e prosperidade, pensou. Atendeu ofegante. "O senhor é parente de Janaína dos Santos?". Sou pai, ele disse. "Pode vir para a Santa Casa?" O que aconteceu?, ele perguntou. Depois de um silêncio que pareceu eterno, a voz do outro lado falou: vem assim que puder. Marlene já estava sentada na cama quando Silvio largou as palavras que ela mais temia escutar: "Aconteceu alguma coisa com a Jana". No hospital, souberam que Janaína e sua mulher tinham sofrido um acidente de carro e que morreram a caminho do hospital. Marlene perguntou se havia uma criança com elas e souberam que a neta não estava no carro, e essa seria a única boa notícia por muito tempo.
Inês, constava em testamento, ficaria sob os cuidados dos avós. E Silvio e Marlene eram os únicos avós vivos. A tristeza se misturou ao caos de ter em casa um bebê de menos de três anos. Marlene olhava para a neta e não enxergava a filha. "Ela não se parece com a Jana, Silvio!". Silvio queria responder que não haveria mesmo como se parecer; Claudia era filha de coreanos e tinha gerado Inês com um amigo de infância. Em que circunstância Marlene achava que Inês poderia se parecer com Janaína?
As primeiras semanas foram de confusão e desespero. Marlene não sabia o que fazer com a criança que chorava demais, Silvio não sabia o que fazer com a tristeza que doía demais. Ele era advogado e vez ou outra levava o bebê para o trabalho. Dizia que fazia isso para Marlene poder respirar, mas fazia isso porque com Inês se sentia mais perto da filha. Na rua, as pessoas fitavam o casal negro e de meia idade que carregava com eles uma criança oriental. No começo, Marlene não ligou, mas depois de alguns meses começou a se enfurecer. "Roubei a criança numa viagem à Coreia", dizia aos que encaravam.
No verão, foram para o Rio na companhia dos três filhos, tios de Inês. Era uma família de negros entretendo uma criança oriental que corria pela praia gritando vovô e vovó. "Custava a Jana ter gerado essa criança?", reclamava Marlene quando os olhares eram excessivos. "Mãe, o combinado era a Claudia ter o primeiro e a Jana o segundo, você sabe disso, não faz a louca", respondiam em rodízio. Marlene ignorava e, no dia seguinte, repetia a pirraça. "Queria poder ver a Jana em você, meu bebê", dizia à neta quando estavam sozinhas.
Com o tempo, retomaram algum ritmo: Inês ia ao trabalho com o avô, ao terreiro com a avó, a jogos com os tios. De noite, Silvio lia para Inês na cama, como tantas vezes fez com a filha. Pela manhã, Marlene acordava cedo para picar o mamão e descascar a laranja que Inês amava, como tantas vezes fez para a filha. Aos domingos, comiam no Bom Retiro, num restaurante coreano do qual viraram fregueses depois de muito frequentar o bairro de modo a fazer Inês se reconhecer pelas ruas da cidade.
Os anos passaram, Inês cresceu e aos 17 entrou em biologia. Para celebrar, Silvio deu à neta uma viagem de dois meses à Austrália, país que ela sonhava conhecer. Os avós foram levá-la ao aeroporto; seria a primeira vez que passariam tanto tempo longe. Na despedida, Marlene abraçou Inês e não largou. Depois de um tempo, Silvio tocou o ombro de Marlene para que ela soltasse Inês, que estava rindo. "Vó, Ogum tá me guiando, fica tranquila", disse segurando com as duas mãos o rosto da avó e dando um beijo demorado. Vendo a neta embarcar, Marlene olhou para Silvio e disse: "Não poderia ser mais perecida com a Jana".
Texto de Milly Lacombe, na Folha de São Paulo.
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