quarta-feira, 3 de novembro de 2021

O fracasso do amor


Nomear o amor é tão necessário quanto vivê-lo. Ainda que sua tradução nos escape, somos compelidos a transmitir o que experimentamos. As formas de definir o amor mudam em função da época e dos discursos que usamos, seja o da religião, o da arte ou o da ciência.

Ainda que nos escape a palavra final sobre o amor, concordamos que ele é condição para o laço social e barreira à nossa destruição. Daí a premência em cantar, louvar e estudar o amor.

No remake de "Cenas de um Casamento" (HBO, 2021) questões sobre as relações amorosas conjugais são suficientemente oportunas para que se abstraia a temerária releitura de uma obra-prima, como bem nos lembra Helen Beltrame-Linné​.

A inversão dos papéis convencionalmente atribuídos aos homens (provedores principais, alheios aos cuidados domésticos e dados a relações extraconjugais) —aqui vividos pela esposa— nos obriga a confrontar estereótipos. Jogada interessante, mas que não leva muito além.

O casal Marianne e Jonathan se formou a partir do que o marido chamou de "milagre". O encontro entre dois sujeitos meio perdidos, que reorganizaram suas questões com o mundo a partir dessa relação. Ele em crise com os preceitos familiares nos quais foi criado, repletos de restrições, indo em direção a um casamento judaico tradicional e baseado em altas expectativas morais. Ela quicando de uma relação insatisfatória para outra, afeita a grandes paixões um tanto deletérias e um tanto autodestrutivas.

Dá-se o encontro no qual cada um passa a ser o salvador do outro, trazendo erotismo aonde carecia e estabilidade aonde o caos imperava. Mas ser "salvo" tem seu preço. O outro se torna o fiador do bem-estar e portanto, seu vigia. Como alguém poderia nos salvar de nós mesmos? E se fosse possível, ainda assim, seria desejável?

Nesse caso, a declaração "estou com você porque você me faz bem" torna-se rapidamente "preciso de você para estar bem". Quem leva a fama de fiador da vida do outro acaba por servir também de álibi. Nessa lógica é o outro que me impede de me realizar, sem ele eu estaria vivendo a vida adoidado.

Nem salvador, nem inibidor. Bancar o desejo não é fácil sob nenhuma circunstância, pois implica escolher, perder e se responsabilizar pelas escolhas/perdas.

Para reencontrar alguma forma de negociação possível com o desejo, precisamos tirar o outro do lugar de alguém que nos completaria e renderia. Aliás, em muitos casos de feminicídio ouve-se o argumento de que era impossível viver sem a ex-companheira. Não são raros os casos de feminicídio seguidos de suicídio.

Marianne e Jonathan terão que resolver a intrincada equação entre sustentar o seu desejo e as expectativas pessoais, parentais e conjugais. A forma atabalhoada como tentam essa transição revela a insistência em conciliar o inconciliável sem as perdas a serem assumidas. A relação acaba por padecer daquilo mesmo que justificou sua existência, ainda que não se resuma só a isso.

O salvador torna-se aquele que impede o outro de respirar e a violência parece ser a única forma possível para o desenlace. Ultrapassado o umbral do fim, talvez reste algo digno de ser compartilhado. Em outro espaço, menos marcado pela ideia de completude e repetição, mais onírico, fora do tempo e fragmentado. Talvez aí algo possa acontecer, circunstancialmente.

O fracasso do amor conjugal nem sempre se deve à falta de afeto, mas à impossibilidade intrínseca de suturar nossa solidão fundamental. Ainda assim, o amor segue sendo a melhor forma de tentá-lo.


Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

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