Apesar dos exageros, o "politicamente correto" melhora muitas coisas na vida cotidiana. Tenho total simpatia pelas inovações no campo dos banheiros públicos, por exemplo.
Coisa mais chata essa divisão entre banheiro masculino e feminino. Minha implicância é profunda e vem de longe.
Não sei se isso acontece com as crianças de hoje em dia, mas no meu tempo eram comuns os sangramentos de nariz. Interrompe-se a aula: o menino é conduzido à enfermaria. Não. Nem sempre o caso inspira tais alarmes.
Uma vez, a ajudante da professora achou que o banheiro feminino estava mais perto. Afinal, eu precisava só de um algodãozinho. Entramos. Talvez fosse um lugar reservado apenas a mestras e funcionárias: que surpresa!
Sobre uma mesinha, via-se um vaso de flores. Tudo era limpo, discreto, organizado, cheiroso.
Era outra a situação do banheiro dos meninos —antiquíssimas baias, como banheiras verticais, perfilavam-se em concavidades mortíferas. A memória de muita urina antiga desenhava um mapa amarelo e preto, como uma América do Sul de cabeça para baixo, esvaindo-se num ralo férvido de fungos e miasmas.
Mais tarde, conheci os urinóis brancos, do tipo Marcel Duchamp, lembrando cuecões sem nada dentro.
Nada? Já vi naftalinas, bitucas de cigarro, chicletes, cubos de gelo, piscinas de xixi diluídas pelo entupimento…
Invenção lamentável, bizarra, pornográfica. Ninguém, que eu saiba, instala um mictório desses na própria casa. Toda família civilizada recorre à mesma privada; tranca-se a porta do lado de dentro, e nada mais há a ser dito.
Qual a razão do urinol? Passei boa parte da juventude evitando me aproximar desse receptáculo troglodita. Tinha vergonha. Pior: a vergonha era tanta, que o xixi não saía.
Um amigo, tendente à observação intensa e silenciosa da nossa humanidade, foi certa vez repreendido num banheiro. Esperava a sua vez, atrás de um cidadão que já havia se postado, pernas em 45 graus, diante da louça indiferente. Talvez esse meu amigo tenha se aproximado demais da nuca do urinador desconhecido. Ficou olhando.
Ele se voltou, com cara de poucos amigos. "Se você ficar por perto, meu xixi não sai." O que responder, diante de confissão tão íntima? "Ah", disse apenas o meu amigo.
Meu caso era parecido. Mesmo sem nenhum curioso por perto, meu inconsciente (ou talvez meu superego) recusava-se à atividade, tão pura, da micção.
Eu preferia entrar no cubículo da privada. Não é o mais certo? Não é o que fazemos em casa? Verdade que, muito mais tarde, aprendi um segredinho, que, como serviço ao leitor, compartilho aqui. Para que o xixi saísse nessa situação envergonhante, bastava imaginar que eu estava urinando através do dedão do pé. Qualquer um dos dois, não importa.
Mas deixo de lado essa inconfidência, para insistir na ideia inversa, a da reserva, da decência. Coisa mais feia, com efeito, essa parede de homens de pé, em colóquio solitário num mictório duro, bruto, fabril!
Claro que é a festa do machão. Ele chacoalha o chocalho como a menina de Angola do Chico. Findo o exercício, celebra o único momento em que lhe é permitido dar uma rebolada.
Nunca foi tão homem: reproduz, com seus iguais, o privilégio ancestral do pipi do papai bípede.
Para ele, o pudor já é sinal de feminilidade. Vestiários, chuveiros, espalhamentos de toalhas, encravamentos de unha, assoadas de nariz: esta a sua ecologia.
O Brasil é até melhor que outros países. A França é famosa pelos cercadinhos que, com objetividade naturalista, escondem só a parte central do corpo urinador. Às vezes, uma portinhola dupla, como nos saloons do faroeste, é a única barreira de privacidade estabelecida pelo poder republicano.
Não; chega desses balangandódromos diluvianos. O banheiro unissex, ou neutro, é o mais racional e correto.
Problemas: alguns homens, com relação à privada, comportam-se como se estivessem no urinol. Há quem, falando ao mesmo tempo no celular, descuide da mira. Justifica-se a recusa de uma mulher a entrar nesse "sanctum sanitarium" do estabanamento peniano.
E muitas mulheres, depois de tolerar maridos e namorados numa mesa de restaurante, podem desejar um espaço próprio para a conversa e a confidência.
Soluções arquitetônicas e sanitárias já vão surgindo, tenho certeza. Insisto apenas no essencial: o fim do banheiro machão, passo importante, a meu ver, para extinguir o próprio.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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