Calma, creio que não há motivo para alarme. Ou talvez deva falar no plural: alarmes. O primeiro alarme soou em Portugal. Várias crianças começaram a falar português do Brasil, por causa da exposição continuada a vídeos de um youtuber brasileiro, durante a pandemia, e os pais afligiram-se.
Os filhos dizem grama em vez de relva, geladeira em vez de frigorífico e usam a conjugação perifrástica com o verbo no gerúndio (estou vendo) e não no infinitivo (estou a ver).
Se o problema é as crianças falarem outra variante do português, então não há problema: aprenderam gramática e vocabulário, ficaram a saber mais sobre a sua língua e abriram a sensibilidade ao português brasileiro —uma sensibilidade que os brasileiros nem sempre têm em relação ao português europeu, tanto que até quando pretendem caricaturá-lo recorrem a uma expressão que, em 47 anos de vida, nunca ouvi um português usar: ora pois.
O segundo alarme soou no Brasil. O caso seria mais uma prova de altivez linguística e de discriminação antibrasileira em Portugal. Ora, quando se apoquentam por seus filhos dedicarem demasiada atenção a um youtuber brasileiro, os pais portugueses não estão preocupados por ele ser brasileiro, estão preocupados por ele ser youtuber. Se os garotos tivessem começado a falar com sotaque por demasiada exposição a palestras sobre a obra de Carlos Drummond de Andrade, creio que os pais não se inquietariam.
Por outro lado, se as crianças tivessem passado a falar com sotaque de São Miguel, por terem visto demasiados vídeos de youtubers açorianos, julgo que os pais se inquietariam de novo —até porque teriam dificuldade em entender os filhos. As diferenças entre a variante portuguesa e brasileira, que são enriquecedoras, costumam ser vistas como um incômodo. Em ocasiões como esta, há sempre quem defenda que mais vale admitir que são duas línguas diferentes. Seria ótimo para mim. Posso, de um dia para o outro, enriquecer o meu currículo dizendo que falo outro idioma. Serei poliglota instantâneo sem estudar nada, que é o meu modo favorito de obter qualificações.
O meu livro de português do sexto ano tinha aquele poema da Cecília Meireles: "Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste:/ sou poeta."
Se o português do Brasil é outra língua, eu descubro agora, como o Monsieur Jourdain, que a falo desde criança.
Texto de Ricardo Araújo Pereira, na Folha de São Paulo.
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