Se tivesse que dar um palpite sobre qual foi o mantra da pandemia, diria que foi "respira fundo e vai". É o que fazemos para sobreviver a situações de crise: interromper as práticas ordinárias circunstancialmente em favor de um objetivo maior. Esse estado de suspensão ativado por nosso senso de urgência redimensiona as prioridades e nos oferece um sentido: tentar sair vivo ao final do perrengue.
A pandemia à brasileira é uma versão da crise mundial, que tem como agravante o pandemônio econômico e político criado pelo desgoverno, que nos fez sofrer muito mais do que o inevitável durante esses quase dois anos. Da higienização de cada embalagem que chegava em casa às constrangidas passeatas por medo de aglomeração, da falta de saneamento básico para lavar mãos à paramentação de segurança, das festas clandestinas às mortes por falta de oxigênio e de leito, tivemos de tudo nesse período orquestrado por um dos piores governos da história mundial.
Quem tinha dúvidas da relação inextricável entre sujeito e sociedade teve que rever seus conceitos. Nunca se discutiu tanto no Brasil as motivações inconscientes que levam os cidadãos a elegerem seus algozes e o retorno do recalcado histórico, trazendo no coletivo o que não foi elaborado em cada um de nós. Essas perguntas, no entanto, não são inéditas e não deixarão de ser feitas, pois revelam algo que insiste: exploração sistemática do desamparo existencial feita por figuras que acenam com fórmulas messiânicas e promessa de desresponsabilização.
Mas voltemos ao tempo de exceção que a pandemia/mônio nos obrigou a viver durante esses 20 meses de ameaças e infinitas contrariedades, na qual mortes e perdas irreparáveis conviveram com gestos solidários e conscientização política.
Diante disso tudo, estaríamos radiantes pelo retorno ao "normal" graças à ciência e ao controle do vírus que ela conquistou? Não é bem assim que funciona. A suspensão da vida ordinária em função do Covid mudou nossas prioridades, mas também serviu de álibi para nossas questões mais espinhosas. A vida adquiriu um sentido de urgência dado pelas circunstâncias, que nos eximiu de pensar quem somos nós flutuando na bola azul solta no espaço. Encontrar um sentido para a vida é nossa maior busca, sendo o suicídio marcado por sua perda. Não é incomum vermos sujeitos que largam o conforto dos países desenvolvidos em busca de uma vida de voluntariado no Hemisfério Sul. Alegam que o trabalho com populações carentes traz sentido a uma vida confortável, mas previsível.
Christian Dunker, com quem discuti o tema recentemente em evento da Abepar (Associação Brasileira de Escolas Particulares), lembrou do caráter eminentemente narcísico de se fechar dentro de casa, longe do olhar alheio, sem ter que negociar espaços públicos e inteiramente voltado para si.
As boas desculpas para evitar reuniões ou deslocamentos exaustivos também acabaram e são alguns dos ganhos secundários que o fim da pandemia vai eliminar. Isso significa que vivemos agora um novo período de adaptações e remanejamentos, leia-se, de exigências e estresse.
As oscilações de humor, que vão da epifania por encontrar amigos ao desânimo de não se reconhecer nas antigas práticas, são esperadas. Qualquer promessa de que se trata de um período só de alegrias seria leviana. Voltar à prática das filas, a fazer silêncio nos cinemas e shows, voltar a compartilhar o espaço público, é tudo trabalhoso. Hora de ficarmos atentos aos novos sinais de cansaço e riscos de adoecimento.
Queríamos tanto voltar, mas não há volta, há recomeço.
Carnaval, merecido, só depois.
Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário