domingo, 28 de fevereiro de 2021

O grande equívoco

O amor é um equívoco. Todas as pulsões do amor são um equívoco. Mas esse equívoco é a única coisa que existe. A voluptuosa Anita Ekberg, em “A Doce Vida”, entra na Fontana di Trevi e chama Marcello.

“Marcello, come here!” E o que Marcello faz? Tira os sapatos, entra na água e, andando lentamente em sua direção, resignado, como que seguindo um mandado da espécie, diz: “Estamos todos equivocados”.

Ele tem razão. Estamos todos equivocados e caminhamos para o equívoco do amor, feito zumbis. Mas que equívoco mais saboroso, mais ardente, mais poderoso. As pessoas estão mortas e apagadas até que, de repente, se apaixonam e nelas se acendem todas as luzinhas da árvore de Natal.

Sentem-se desejadas, voltam a desejar, vão para a cama com alguém que as faz sentir algo que nunca ninguém as tinha feito sentir antes. Depois da poeira cósmica, a experiência vital passa a ter novas paisagens. E esse amante já se torna uma droga pesada, uma picada no sangue, e sua ausência, um desassossego. Queira Deus que você se apaixone, diz uma maldição cigana.

Vou escrever histórias sobre gente assim, que faz coisas absurdas por amor, como mariposas se jogando na fogueira. Gente que se entrega, apesar de todas as advertências. Vinte anos atrás, uma amiga me perguntou sobre um sujeito que eu sabia que era um desastre, um compêndio de infelicidade, um entroncamento de problemas.

Fiquei um bom tempo falando mal desse sujeito para ela. Acenei diante de seus olhos com todas as bandeiras vermelhas. Hoje eles vivem juntos numa espécie de fúria conjugal irrefreável e extenuante. Quem era eu para lhe dizer que ela estava errada? Terá sido a experiência border o que lhe deu coragem?

Será que eu estava apaixonado por ela? O desejo é um animal que se move na escuridão. Vai tateando nas sombras. Não podemos guiá-lo, nem matá-lo, nem freá-lo. E atrás de si ele vai deixando um rastro de infelicidades, traições, humilhações, brigas, fotos, convivências, corações despedaçados, mensagens, contaminações, abortos, filhos, divórcios, mudanças, migrações, lágrimas.

E é assim que tem que ser. Porque é o amor ou nada. O contrário da morte não é a vida, mas o sexo, diz a escritora Milena Busquets. Vamos para a cama para nos fundir com o outro, para tentá-lo, para sentir que somos quase infinitos, porque continuamos no outro, no beijo, no abraço, parece que não existe mais fronteira, que espreitamos a completude, devoramos, somos devorados, forma-se a roda infinita, uma imortalidade que brilha de repente, e do mesmo jeito que brilha, se apaga, e ficamos com os corações a galope, jogados na cama, porém outra vez divididos nessa fusão que não aconteceu.

O pai de uma namorada minha da adolescência nos flagrou uma vez, afogueados e tirando a roupa. “O que vocês estavam fazendo?”, perguntou. Querendo deixar a situação mais leve, fiz uma piada. Estávamos fundindo o átomo, acelerando as partículas. Ele não gostou. Quando fui embora, desceu comigo no elevador e abriu a porta da rua para mim sem dizer uma única palavra.

Nos dias de hoje, em que o outro é um corpo infeccioso, virótico, tão diferente da foto do perfil, tão hiper-real, incontrolável, com cheiros, problemas, com olhos de medo, por que as pessoas continuam a se atirar, nuas, em cima das outras? Para escapar do quê? O equívoco continua acontecendo, apesar de tudo. Embora doa e seja uma tragédia, nos esvaziamos no amor.

Uma amiga sempre me conta de seus encontros no Tinder. Outro dia, me disse: Quando nos despedimos, ele fechou a porta bem devagar, mas aliviado, como quem desliza o dedo na tela do aplicativo já sabendo que nunca mais vai te ver de novo.


Texto de Pedro Mairal, com tradução de Lívia Deorsola, publicado na Folha de São Paulo

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Com mergulho na ficção, livro investiga realidade da violência na Escandinávia

 Doze. Esse, em média, é o número de assassinatos que Oslo, capital da Noruega, registra a cada ano. A mesma estatística vale para Copenhague, na Dinamarca. Em Estocolmo, capital da Suécia, as coisas pioram bastante: 30 homicídios em média. No país todo, 120 por ano.

Na última década, os três países viram crescer os homicídios resultantes da guerra entre gangues. Todos têm dois ou três casos de assassinatos em série espalhados pela história.

A maioria dos crimes, no entanto, resulta de brigas domésticas. Como diz um policial sueco à ensaísta americana Wendy Lesser, "o lugar mais perigoso é a sua cozinha, e a arma mais letal, a sua faca de pão".

Tendo em vista esses fatos, é intrigante que o policial nórdico tenha se transformado num gênero de exportação. Henning MankelStieg Larsson ou Jo Nesbo —todos publicados por aqui— são hoje para a Escandinávia aquilo que Jorge Amado foi para o Brasil em meados do século 20.

Mais intrigante ainda é o fato de que essa ficção seja especialmente brutal, às vezes quase sádica, e tenha um esquadrão considerável de supervilões e monstros sexuais.

Existem, claro, explicações "ready made"Por exemplo: na Escandinávia ordenada, igualitária, com índices incomparáveis de desenvolvimento humano, o noir representaria o "retorno do reprimido".

Ou então a teoria que um jovem garçom de Oslo apresentou à já citada Wendy Lesser: o noir escandinavo é a versão pop da filosofia de Kierkegaard, "uma busca por soluções, sabendo que elas não existem".

Fundadora da revista literária Threepenny Review e autora de vários livros de crítica cultural, Lesser é cautelosa com esse tipo de generalização. Ela começou a ler policiais nórdicos nos anos 1980, muito antes da moda, e nunca mais parou. Depois de quatro décadas devorando dúzias de romances, sentiu que carregava consigo uma Escandinávia imaginária incrivelmente vívida e detalhada. Decidiu escrever um livro, "Scandinavian Noir", para descobrir qual tipo de conhecimento a ficção lhe trouxera.

A primeira parte do livro é um compêndio de temas recorrentes no noir escandinavo, uma mini-enciclopédia que vai do consumo de álcool à xenofobia, da decoração de interiores à violência sexual.

A segunda parte é o diário de uma viagem à Suécia, à Dinamarca e à Noruega, com passagem obrigatória por delegacias. O intuito é averiguar quanto a ficção alterou a realidade.

Lesser descobre discrepâncias significativas, não somente devido às estatísticas sobre homicídios. O ponto de vista quase exclusivamente masculino dos romances, por exemplo, está em claro desacordo com a realidade das delegacias, onde há mulheres em todo tipo de função.

Ela tampouco encontra um motivo palpável para que a violência sexual, especialmente contra crianças, seja tão prevalente nos livros. Estupro e pedofilia online são preocupações da sociedade, mas não no grau obsessivo com que aparecem na ficção.

No fim das contas, porém, a Escandinávia mental de Lesser sobrevive ao choque com o mundo exterior.

Isso porque, sugere a autora, a tradição do policial nórdico teve a sorte de ser inaugurada, nos anos 1960, por um duo de realistas incrivelmente talentosos: Maj Sjöwall e Per Wahlöö, autores a quatro mãos dos mistérios do agente Martin Beck. Depois deles, cada nova geração de escritores continuou acrescentando, consciente ou inconscientemente, elementos a um mesmo quadro.

Assim, apesar de a ação dos livros ser quase sempre exagerada, e às vezes até delirante, a descrição dos cenários, dos costumes e dos rituais cotidianos é tão sólida que os enredos são redimidos, e a realidade se impõe. Na Escandinávia, diz Lesser, a ficção é, sim, um bom guia para o real.


Texto de Carlos Graieb, na Folha de São Paulo


SCANDINAVIAN NOIR

  • Preço R$ 96,93 (288 págs.)
  • Autor Wendy Lesser
  • Editora Macmillan Publishers

Minha maior herança foi a culpa, diz Luiz Schwarcz, que lança livro sobre depressão

O editor Luiz Schwarcz há muito tempo queria escrever um livro sobre seu pai. Tateou a ideia com abordagens cautelosas, algumas frustradas, outras não —até que percebeu, numa epifania nos Alpes, que sua própria vida se juntava à dele.

Foi a origem de uma autobiografia que adianta no subtítulo ser a “história de uma curta infância e de uma longa depressão”. Um livro sobre a doença com a qual foi diagnosticado, diz Schwarcz, “é quase igualmente, ou até mais, um livro sobre o meu pai”.

“Eu digo que a minha maior herança foi a culpa, apesar de meu pai ter sido um homem extremamente generoso. Ela está no centro da minha vida desde o momento em que meus pais depositaram em mim… Ou, é mais correto dizer, eu senti a responsabilidade sobre os meus pais tão cedo.”

“O Ar que me Falta”, cujo título é inspirado por um dos sintomas de episódios depressivos, relembra a época em que o poderoso editor, fundador do maior conglomerado de livros do país, a Companhia das Letras, era um garoto.

A história de seu crescimento vem sobrecarregada por inseguranças, pelos conflitos conjugais de casa e pela indigerível memória de um avô húngaro enviado a um campo de concentração na época da Segunda Guerra Mundial.

O pai, André, conseguiu escapar e migrar para o Brasil, mas o peso da culpa foi repassado às sucessivas gerações dessa família judia. André confidenciou a Luiz em dois momentos decisivos que estava no mesmo trem que carregava o avô, Láios, em direção ao provável extermínio. O homem mais velho encontrou uma brecha e o chutou para fora do vagão —“Foge, meu filho, foge”.

A escolha por narrar a vida de seus antepassados por uma lente autobiográfica soou a Schwarcz como a mais acertada, já que a ânsia por escrever, diz ele, “era uma resposta tardia a um silêncio angustiante que vem desde a minha infância”.

A obra relata como o empilhamento dessas ansiedades avançou para diagnósticos de depressão e bipolaridade, hoje controladas depois de anos de acertos e erros com psicólogos e psiquiatras.

O editor não se furta a confessar trechos violentos, como uma tarde em que acabou ferindo a si mesmo. “Não creio que tenha sido de fato uma tentativa séria de suicídio, e sim um ato de desespero, para chamar atenção”, escreve.

E inclui episódios que tiveram repercussão pública, como o soco que desferiu num homem que o ofendeu em uma plateia da Flip, há dois anos. Questionado sobre um possível caráter de prestação de contas que a biografia ganha diante de casos como esse, ele diz achar a pergunta correta.

“Sou um bipolar muito leve, tenho poucos momentos de descontrole. Mas tenho. Estão narrados no livro. Nesses momentos, eu sinto um profundo arrependimento social, empresarial, o que quer que seja. O episódio da Flip está narrado como um deles, assim como um outro em que gritei de maneira totalmente descontrolada com uma funcionária —foi a única vez na minha vida, mas claramente perdi o controle.”

Discutir esses eventos faz com que Schwarcz volte ao tema da culpa. “Em um minuto escrevi uma carta de desculpas para todos os funcionários. Liguei para os meus sócios ingleses. Fiquei muito mal também por ter me descontrolado na Flip, embora a maioria das pessoas tenham dito que, no meu lugar, também se descontrolariam. Mas o bipolar sempre tem a culpa ali, de sobreaviso.”

O sentimento também está ligado, segundo ele, a um traço de arrogância —de se achar responsável pelo mundo, por resolver todos os problemas e amarrar todos os fios.

É uma certa busca por manter tudo sob controle, que se manifesta também durante esta entrevista, quando o editor sugere cortar partes excessivamente longas de suas respostas e, depois, numa mensagem gentil ao repórter por WhatsApp, pede para corrigir oralidades que tenham escapado nas falas.

É de se pensar o quanto esse rigor afetou o processo de preparação do livro. “Sou um escritor que necessita de edição. O meu texto precisa de diálogo, especialmente nesse livro, que saiu de maneira muito forte e rápida.”

Schwarcz conta que, logo no início da pandemia, passava quase 18 horas por dia escrevendo de maneira compulsiva. “Não consegui escrever esse livro com melancolia, ele foi escrito em mania. Como se fosse uma coisa que estava sendo escrita por 60 anos. Então precisou de um respiro.”

Ele credita o produto final a um intenso processo coletivo da equipe da editora e às leituras de sua mulher, Lilia, e seus filhos, Júlia e Pedro. E reconhece incentivos de figuras como o médico Drauzio Varella, que se tornou uma espécie de mentor da obra. “Ele disse que ajudaria as pessoas a verem que, por trás do sucesso, pode ter também muito sofrimento.”

Sem dúvida uma narrativa que aborda a saúde mental de forma franca pode ajudar a dirimir alguns estigmas. Mas é com igual franqueza que Schwarcz responde se esse foi o estímulo que moveu o livro.

“Durante o tempo em que escrevi, estava muito imbuído dessa ideia de ajudar as pessoas deprimidas. Mas, com toda a sinceridade, essa justificativa para escrever o livro é completamente furada.”

“Para ser honesto com o leitor, tenho que dizer que escrevi para mim mesmo”, completa. “Para transformar uma coisa muito difícil pela qual passei no objeto do meu trabalho e veneração, o livro.”


Resenha de Walter Porto, na Folha de São Paulo

Numa fábula de Kafka, a letargia que a pandemia provocou no Brasil

 É parca a literatura acerca da peste iniciada há um ano. Era de se esperar. A catástrofe só piora, seu pico parece se afastar, não chegar nunca. Será preciso tempo, reflexão e fantasia para se obter relatos que revolvam a tragédia, que avaliem o peso de milhares e milhares de mortes, de milhões de vidas viradas de cabeça para baixo —como a sua.

A literatura dá forma a sentimentos difusos, a pensamentos sem nome, e faz assim com que se perceba o que os indivíduos e a espécie são. Por isso a pandemia reavivou o interesse por “Decameron”, de Boccaccio, “Um Diário do Ano da Peste”, de Defoe, “A Peste”, de Camus.

Mas há um autor que, sem abordar expressamente calamidades bombásticas, diz muito dos dias que correm —dias de enclausuramento individual e anomia social. Talvez porque tenha escrito entre duas carnificinas, a Primeira e a Segunda Guerra. Ou porque, no interregno da grande guerra civil de 1914 a 1945, viu o que viríamos a ser: Kafka.

Numa prosa de tabelião, ele anteviu o sem sentido, o mal-estar permanente e sem escape no qual nos precipitamos. A ladeira impele a pessoa rumo ao muro no qual baterá a cara e cairá —e a bota do ogro lhe pisará para sempre o rosto. Não obstante, vamos em frente.

“Pequena Fábula” é um microconto de três frases que Kafka escreveu ao redor de 1920. Às vésperas da morte, pediu ao amigo Max Brod que o destruísse, assim como todos os seus inéditos. Publicado postumamente, foi traduzido por Modesto Carone e está no livro “Narrativas do Espólio”. Ei-lo, na íntegra.

“Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via a distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro.”

“Você só precisa mudar de direção”, disse o gato, e o devorou.

É uma fábula porque nela os bichos falam. Mas não tem nada de Esopo ou La Fontaine, não se encerra com uma lição de moral. Os contos e romances de Kafka nunca chegam a conclusões. E estão cheios de animais, vários inexistentes —e que aos poucos se descobre não serem humanos.

O mais ilustre deles é o “inseto monstruoso” de “A Metamorfose”, no qual Gregor Samsa se vê transformado ao acordar. Sem porquê nem quando, virou um bicho marrom e cheio de pernas, desprezado pela própria família. Desumanizado, morrerá desentendido de si mesmo.

Os personagens da “Pequena Fábula” são híbridos que falam como humanos e agem como animais. O “ah” inicial combina surpresa e constatação. Ele inaugura e sintetiza as oposições binárias que percorrem o curto diálogo de uma ponta à outra: estreito/vasto, paredes/canto, direita/esquerda, princípio/último, rato/gato.

Amálgama de felicidade e medo, a correria do rato serve de figura para os dias de hoje, nos quais a peste nos empareda progressivamente. O que era vasto se estreita até desembocar no canto onde duas alternativas aguardam o rato, a ratoeira ou o gato. Elas são na verdade uma —mutilação e morte.

Há ironia na terceira alternativa, oferecida pelo gato ao rato: é só mudar de direção, e em seguida o devora. O final surpreende, mas não chega a ser engraçado porque Kafka, realista, faz com que o mais forte triunfe inapelavelmente. Seu gato e seu rato são o oposto de Tom e Jerry.

O desenho animado é uma repetição obsessiva de agressões. Tom e Jerry normalizam a violência subjacente à vida real. Educam as crianças para o exercício e a submissão à violência. Ensinam a mesclar força e esperteza. Festejam o frenesi de um mundo movido a tiros e socos sem fim.

Kafka, não. Sem ilusões, incorpora tal mundo à arte. É por isso que sua literatura retrata tão bem a crise provocada pela peste. Sobretudo no Brasil. É como ratos que corremos entre paredes que convergem e nos conduzem ao canto onde o golpe nos aguarda. Um golpe político, coletivo e existencial —que nos animalizará de vez.

Nossa única chance é mudar de rumo. Mas como, se a letargia é geral? Em “Uma Mensagem Imperial”, a resposta imaginada por Kafka não chega nunca a seu destinatário, que “sonha com ela quando a noite chega”.

Em “Na Galeria”, o espectador, inerte diante das desgraças à sua volta, afunda “num sonho pesado, chora sem o saber”. A um amigo, Gustav Janouch, Kafka disse: “Existe muita esperança, mas não para nós”.


Texto Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo

Churrasco, caipirinha e suicídio coletivo

 “Parem esses histéricos! Não tenham medo de morrer!” Uma jujuba para quem adivinhar ou autor dessas frases.

Não, não foi o Jair, embora pudesse ter sido. Foi o Jim. Jim Jones, pastor norte-americano que fundou uma comunidade utópica rural na selva da Guiana. Quando tudo degringolou em Jonestown, em 1978, ele optou por eliminar fisicamente os membros da seita.

Foram 909 pessoas mortas por envenenamento ou tiro. Destas, 304 eram crianças. Muitos obedeceram ao pastor e tomaram ki-suco com cianureto; quem desobedeceu foi assassinado. O próprio Jim se matou com uma bala na cabeça.

O Brasil, hoje, é uma Jonestown com 212 milhões de habitantes.

Sem saber como parar o vírus que mata e corrói a economia, as autoridades convocam a população para o suicídio coletivo.

Vejamos o que disse o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), em transmissão pela internet na quinta-feira (25):

“Dê a sua contribuição. Contribua com a sua família, com a sua cidade, com a sua vida para que a gente salve a economia do município de Porto Alegre.”

Frase longa? Eu edito para você: “Contribua (…) com a sua vida para (…) a economia (…)”.

Das capitais brasileiras, PoA é a que está mais próxima de repetir o pesadelo sanitário de Manaus. O que faz o prefeito? Manda a população se cuidar?

Não, ele convoca todo mundo a sair e comer costela na churrascaria Barranco, a compartilhar uma cuia de mate no parque Farroupilha, a movimentar a economia local.

Deixa de ser maricas, tchê! Contribui com a tua vida, bah! A ordem não poderia ser mais clara: morre e cala a boca. Tá cheio de gente que obedece com gosto.

Em São Paulo, para não peitar os comerciantes, o governador inventou um lockdown disruptivo e inovador: ele ordena o fechamento das coisas no horário em que elas sempre ficam fechadas. Paraná e Distrito Federal farão o mesmo, pois parece ser excelente na contenção da pandemia.

O presidente, com o timing preciso e habitual, discursou contra o uso de máscaras quando o Brasil bateu os 250 mil mortos. Um quarto de milhões de pessoas.

Morreu o equivalente a mais da metade da população de Roraima. A todos os habitantes de São Carlos, Araraquara, Marília ou Jacareí. Às vítimas somadas dos bombardeios atômicos em Hiroshima e Nagasaki.

Falemos o português que brasileiro entende: três Maracanãs lotados já foram despachados para o cemitério.

E, ainda assim, os caras lá de cima querem que nós levemos a vida normalmente, para salvar a economia. Sem vacina e sem usar máscara, que traz o insuportável sofrimento de sentir o próprio hálito –deve ser mesmo difícil para quem recende a Belzebu.

Jim Jones exterminou seus fiéis quando faltava comida e mal havia água para beber em Jonestown.

Aqui, não. Temos churras à vontade, breja trincando de gelada e até caipirinha. Dá para empacotar ao som de pagode, sertanejo ou funk.

Tá reclamando de quê?

Morra e não encha mais o saco.


Texto de Marcos Nogueira, no blogue Cozinha Bruta, na Folha de São Paulo.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Bolsonaro fez com os generais o mesmo que Boninho com Karol Conká

 Nada do que vou relatar a seguir é ficção. Bolsonaro, desde a mais tenra idade, odeia o Exército. Seu sonho era ser jogador de futebol.

Foi seu pai que o obrigou a entrar no quartel. Lá, foi humilhado: um coronel reprovou a “falta de lógica, racionalidade e equilíbrio”, e outro condenou a “excessiva ambição em realizar-se financeiramente”.
Humilhado, tentou explodir quartéis. Seu plano foi descoberto pela imprensa. Condenado à reserva, ficou tarde pra tentar o futebol. Sobrou a política. Melhor assim.

O tempo livre permitiria que ele arquitetasse a vingança. Dedicaria a vida a demolir a instituição que moeu sua juventude e lhe roubou todos os sonhos. O povo precisava saber a verdade sobre o alto escalão do Exército brasileiro.

Quando Bolsonaro chegou à Presidência, os generais ainda gozavam de alguma popularidade —devido sobretudo à memória curta do povo brasileiro.

Palestravam na GloboNews como se não tivessem falido o país 30 anos antes. O novo presidente, no entanto, tinha um plano em mente: dar a eles cargo de confiança. Colocá-los em posições estratégicas. Distribuir ministérios e microfones. O resto, eles fariam sozinhos.

Dito e feito. O general Pazuello fez, de livre e espontânea vontade, um estrago maior para a imagem do Exército do que a esquerda em décadas de propaganda antimilitar.

Bolsonaro realizou o sonho de todo brasileiro: desmascarou a incompetência dos chefes em rede nacional.

Esta semana, um general no comando da Petrobras, mudo, fez ela perder mais de R$ 100 bilhões em valor de mercado.

​Bolsonaro fez com os generais a mesma coisa que Boninho fez com Karol Conká: cercou de câmeras e deixou o povo concluir sozinho.

A esquerda precisa reconhecer nele um aliado. O presidente está fazendo o que Lamarca não conseguiu. Destruiu qualquer chance de os militares voltarem ao poder no país. Sobretudo porque não haverá mais país depois dele.

Resta saber como é que um sujeito limítrofe conceberia um plano tão brilhante. Fácil: o plano pode não ter sido dele.

Ainda adolescente, Bolsonaro diz que ajudou os militares a encontrarem Lamarca. Aqui, e só aqui, entra uma especulação. O guerrilheiro, encurralado na floresta, encontrou o jovem Jair e lhe fez um pedido: “Jovem, falhei. Pode me entregar. Mas tenho um plano pra você. Será preciso paciência.”


Crônica de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Virei leitora da Folha por causa da Ilustrada e nela celebro o centenário

A arte patina nesse início de milênio conturbado. Os jornais espelham a crise, com cadernos de cultura que emagrecem e fenecem. Eu me tornei leitora da Folha por causa da Ilustrada e, através dela, celebro o centenário do jornal.

Nos anos 1980, depois de duas décadas de censura e isolamento, o país ensaiava uma encabulada abertura, entre comícios e derrotas das Diretas Já e o retorno dos exilados.

No Rio de Janeiro, o Circo Voador aportava no Arpoador, a Blitz estourava nas rádios, o besteirol nas ribaltas e a Geração 80 no Parque Laje. Fernando Gabeira abraçava a Lagoa. A democracia adolescente aplaudia o pôr do sol no Dois Irmãos.

Convidada pela Tatu Filmes para fazer “A Marvada Carne”, acabei na Vila Madalena, berço das produtoras cinematográficas emergentes de então. Versão caipira uspiana do Baixo Leblon, a Vila ainda não personificava o abismo entre Rio e São Paulo, que se consumaria com a falência do balneário.
Eu só descobriria outra Pauliceia, para a qual não havia paralelo na Guanabara, ao adentrar os salões da casa do saudoso artista Fernando Zarif.

No amplo apartamento do Itaim circulavam os Titãs, Zé Resende, Jac Leirner, Mag e Lenora de Barros; era um misto de Adoniran Barbosa com os Ramones, de Baudelaire com irmãos Campos, do Sex Pistols com Tonico e Tinoco.

Em meio aos convivas, destacava-se o mais que ferino Pepe Escobar. Neto new wave do Paulo Francis, Pepe intimidava. Cultíssimo, ele era parte da nova geração de enfants terribles da Redação da Folha e encarnava, a meu ver, o próprio jornal.

Mais tarde, essa carioca recém-chegada conheceria os alienígenas Matinas Suzuki, Marcelo Coelho e Nelson de Sá, que não se enquadravam no perfil do Pepe, mas possuíam o DNA aguerrido do diário antenado do Tietê.

Eu só seria apresentada a Otavio Frias Filho em 1992, ele, sim, a alma da Folha. Erudito, irônico e curioso, o Otavio me era indecifrável. Dramaturgo, o seu interesse pelo palco pautou o suplemento cultural do jornal, que dedicou ao teatro análises, matérias e primeiras páginas. A Ilustrada ajudou a transformar o teatro num objeto de desejo da minha geração.

Havia um travo pós-punk naquela São Paulo de fim de século. No crivo de muitos dos colaboradores da Ilustrada, não sobrava espaço para os herdeiros odara do banquinho e violão.

São as impressões de uma ipanemense mal desmamada que entrou numa ponte aérea no aterro e aterrissou no Masp. O Caderno B do Jornal do Brasil e o Segundo Caderno d’O Globo ainda exibiam a elegância palaciana, à la Zózimo, da ex-capital. A Ilustrada era a pá de cal.

Da bossa nova, só sobrava João Gilberto. Da tropicália, Tom Zé. Fora o Ernesto Varela de Tas e Meirelles, a televisão não era nem sequer considerada. No cinema, combatia-se a supremacia carioca dos editais da Embrafilme; no teatro, alternavam-se nas manchetes José Celso, Antunes Filho e Gerald Thomas. O “Clara Crocodilo” do Arrigo Barnabé encarnava o futuro.

Para o bem e para o mal, a Ilustrada representava um desafio algo assustador para os que se aventuravam na profissão artística. Porque o espírito cosmopolita, vanguardista, que pretendia acordar a sociedade do sono de 20 anos, vez ou outra, perdia a mão.

“Regina Casé representa as panelinhas mais nefastas da cultura brasileira. Este país não tem jeito enquanto não derem um tiro na Regina Casé”, escreveu André Forastieri em 1995, na coluna
Ondas Curtas do Folhateen.

Matinas Suzuki, então editor, defenestrou o sujeito. O Folhateen não era a Ilustrada, mas o ataque à Regina e a menção às panelinhas confirmam o desejo da Redação de acabar com a hegemonia cultural da Rede Globo, da Embrafilme, do Asdrúbal e da MPB. Havia um instinto demolidor na Ilustrada da minha mocidade, um quê de revolução cultural.

Trinta anos se passaram e Anitta domina a raia sete das redes insociais, que ameaçam substituir a imprensa. Do capital artístico da ex-Cidade Maravilhosa, restou o Projac, espremido entre as milícias de Jacarepaguá e os estúdios da Record.

Na Ilustrada, nos tornamos reféns da desilusão democrática, discutindo obsessivamente a ascensão da extrema direita, ao som do sertanejo universitário. O agronegócio deslocou o eixo econômico ainda mais para o interior e, com ele, as predileções políticas e estéticas.

Sinto falta da Ilustrada, dos erros e acertos da Ilustrada. Sinto falta até de apanhar da Ilustrada. Mas não é culpa do jornal, é da hora mesmo.

A arte saiu da pauta.


Fernanda Torres e suas recordações para os 100 anos da Folha de São Paulo

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Um país sem limites e sem vergonha

Quando às vésperas da eleição de 2018, o à época comandante do Exército brasileiro, Eduardo Villas Bôas, fez em uma rede social clara ameaça ao STF, pude me dar conta do avançado estado de decomposição política e institucional em que o Brasil se encontrava. A declaração do general, viríamos a saber por ocasião do lançamento de livro-depoimento, foi articulada pela cúpula do Exército a fim de interferir no julgamento de habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Lula. Esse fato simbolizou, a meu ver, o fim da esperança de que o Brasil, finalmente, exorcizara o espírito antidemocrático que sempre o acompanhou.

O episódio que envolveu a pressão dos militares sobre o Judiciário é relevante porque indica, mais uma vez, que parte do Brasil perdeu completamente a vergonha e, com isso, qualquer noção de limite. Mesmo depois desse episódio, continuamos levando a vida como se nada tivesse acontecido, como se fosse normal chamar de democracia um país em que um homem fardado que comanda centenas de milhares de outros homens armados “tuite” sua opinião a respeito de um processo judicial em andamento. Em termos de comparação, o também general e comandante de Exército —só que do Uruguai— Guido Marini Ríos, foi preso em setembro de 2018 por emitir opiniões sobre a reforma da previdência e finalmente demitido em 2019 pelo então presidente Tabaré Vázquez por tecer críticas ao Judiciário.

Mas essa falta de limites não nasceu da noite para o dia. É preciso um ambiente de muita perversão política para que se tome discurso de ódio por “liberdade de expressão” e promoção da desordem autoritária por exercício da democracia. E há um elemento essencial para que o ódio à democracia ganhe forma institucional: o olhar complacente do sistema de justiça, do Congresso Nacional, da grande imprensa e desta entidade quase mística chamada “mercado”. São essas mesmas entidades que irão se mostrar surpresas —ou mais tarde arrependidas— quando a besta que alimentaram lhes morder a mão.

Como diz Wanderley Guilherme dos Santos em “A Democracia Impedida”, no Brasil “nem os liberais morrem de amores pela democracia, nem os empresários são apaixonados pelo livre mercado”.

Para nós brasileiros, se a democracia formal não é algo usual, o que dizer então de uma cultura democrática. Convivemos tranquilamente não apenas com a violência e o autoritarismo, mas também com discursos normalizadores da violência na forma de políticos histriônicos e apresentadores de TV que pregam o assassinato, em rede nacional, a tortura e até a eliminação física de adversários políticos.

A crise econômica e política pela qual passamos faz com que, nas palavras de Luiz Antonio Simas, o empreendimento de ódio que caracteriza o Brasil institucional se torne ainda mais letal do que costuma ser. E se o Brasil se constituiu como uma máquina de matar e de desorganizar o povo é esperado que não tenha limites e, portanto, a necessária vergonha.

O Brasil institucional e as “elites” não tem vergonha de odiar o próprio povo, ainda mais se pobre, negro ou indígena. O Brasil não tem vergonha de fechar o Congresso, até porque, como lembrou o historiador Julio Vellozo, o Legislativo já foi impedido de funcionar outras vezes, o que já nos lega uma verdadeira
“tradição antidemocrática”.

O Brasil não tem vergonha de perseguir juízes ou de colocá-los para perseguir alguém. O Brasil não tem vergonha da tortura. O Brasil não tem vergonha de manter no poder um presidente que se recusa a governar o país durante uma crise sanitária sem precedentes e que lembremos, quando deputado, louvou um torturador dentro do Congresso Nacional. O Brasil não tem limites. O Brasil é sem vergonha.


Texto de Silvio Almeida, na Folha de São Paulo

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Quesito: Carnaval 2021. Nota: zero!

Zulmira Cruz é famosa uma vez por ano, na Quarta de Cinzas, quando o mundo já está combalido, ressacado e deveria estar pedindo água, mas está pedindo X-Tudo no delivery.

A fama de Zulmira Cruz é mais curta do que Andy Warhol previu. Ela tem exatos dois segundos e meio de fama, no momento em que seu nome e sua foto 3X4 tirada em 1999 aparecem na tela do maior canal de TV do país, no momento em que são apresentados os jurados de fantasias das escolas de samba do Grupo Especial do Rio.

Zulmira Cruz mora na cinza da fama eventual: pode andar pela rua sem medo de ser importunada por pedidos de selfie. Mas, uma vez por ano, é reconhecida pelo porteiro com um sorriso especial. Um sorriso que significa que ele a viu na TV, mesmo que por dois segundos e meio, e a reconheceu. Reconheceu sua importância desconhecida.

Assim como Sabrina Sato, Zulmira Cruz trabalha o ano todo para chegar tinindo no Carnaval. Faz hidroginástica três vezes na semana para aguentar a maratona que é ficar sentada num camarote da Marquês de Sapucaí, comendo coxinha fria e analisando cada paetê, o tingimento de cada pena de faisão, e atribuir a eles a justa nota, nem um décimo a mais ou um décimo a menos.

Mas, na Quarta de Cinzas de 2021, Zulmira sabe que sua fama morreu. Pelo menos por um ano. Entre milhões de mortes importantes, o vírus fez uma vítima irrelevante: os dois segundos e meio de fama anual de Zulmira Cruz.

Quando ela liga a TV, no horário em que os jurados do Grupo Especial deveriam estar destilando seu conhecimento técnico, há uma reprise de Laços de Família. Vera Fischer está sugando a língua de Reynaldo Gianecchini no momento em que seu estômago revira —ela não está enojada pela cena de amor de idades distintas, cada um faz o que bem entender, e ela mesma já teve seus garotões. O que a enoja é a ausência do seu rosto na tela. Que vai se desdobrar na ausência do sorriso do porteiro na manhã seguinte e na ausência da moça do caixa do supermercado Guanabara, que vai pensar em perguntar: “Vem cá, você não é a…”, mas vai desistir no meio da frase.

É a primeira Quarta de Cinzas que Zulmira Cruz dorme até o meio da tarde. Dorme porque não há nada para fazer no dia mais morto do ano, a não ser se fazer de morto. Acorda sem saber quando e onde está. E se dá conta de que está na quitinete térrea em Copacabana, onde mora desde que se aposentou como costureira na grife Frankie&Amaury e passou a trabalhar para escolas de samba, só para não morrer de tédio.

E, de tão famosa que ficou nos pavilhões, acabou pinçada dez anos atrás para ser jurada. Enche o copo americano na cafeteira. Dá um gole e sente um gosto amargo que oito gotas de Assugrin não conseguem disfarçar. Zulmira Cruz se sente cansada, com dor no corpo, na cabeça e na alma. Não estivesse isolada há 365 dias, poderia achar que estava com Covid. Mas ela sabe que aquele peso é só o luto de um Carnaval que não houve. Há tantos lutos mais importantes, ela pensa, e se sente uma idiota.

Zulmira Cruz tenta prestar atenção na novela. Mas nem o torso desnudo de Reynaldo Gianecchini consegue manter seu foco. Na cabeça, ela ouve o eco dos números das 585 notas de nove quesitos caindo como bombas sonoras sobre a Marquês de Sapucaí.

Dispersa na sua tristeza, Zulmira Cruz vai para a janela. Pega o jornal O Dia do dia anterior e traça nele linhas horizontais paralelas, de cima a baixo. Repara no musculoso que passa, a máscara tapando a covinha em vez das narinas. Então começa a escrever. E a sorrir de novo. Na sua mente, a voz de trovão de Jorge Perlingeiro narra cada nota que dá para cada pessoa que passa na rua.

“Quesito: posicionamento de máscara. Nota… zero!”

“Quesito: egoísmo juvenil. Nota…. Nove ponto nove!”

Zulmira Cruz coloca a mão no rosto, se sente idiota de novo, mas desta vez sorri da própria bobagem. Ela pode ter perdido um ano de trabalho. Mas ainda não perdeu seu dom.


Texto de Chico Felitti, na Folha de São Paulo

O Carnaval foi cancelado e a realidade é mais esquisita do que o sonho

Aurora vaga de pijamas, sob o sol acachapante de 11h45 no centro. Não se vê vivalma nas ruas e avenidas. Ela persegue o som abafado de uma marchinha, que toca em algum lugar por ali. O pé embola na serpentina, está chegando perto.

Em um cruzamento na Rio Branco, uma pequena banda besuntada em purpurina parece aguardá-la. Aurora se aproxima dos músicos. É quando leva as mãos ao rosto e percebe que se esqueceu de botar
sua máscara de proteção.

Aurora abre os olhos. A realidade é ainda mais esquisita do que o sonho.

Carnaval foi cancelado. E ela divide sua cama com aqueles quatro músicos fantasiados, sem fazer a mais vaga ideia de como foram parar ali.

É hora de acordar, é terça-feira de Carnaval, é o fim da aventura humana na Terra. Eles tocam, batucam e dançam sobre o colchão. Aurora teme por seu lençol de 300 fios e por sua saúde mental.

Tenta expulsá-los do apartamento, mas a banda só se comunica em “folião language”. Aos roucos berros, indagam onde está o Boi Tolo, daqui para onde, essa água é água mesmo ou...? Aurora pensa em ligar para a polícia, mas percebe que seu celular desapareceu.

Ela não consegue impedi-los de invadir o quarto de sua tia-avó, no fim do corredor. Lá dentro, a banda encontra somente uma cama hospitalar vazia.

Aurora enfia a cara em uma máscara e foge do apartamento. Os músicos seguem atrás dela. Penduram-se nas barras do metrô feito crianças no trepa-trepa, mas só Aurora parece se importar com a presença deles e vice-versa.

Aperta o passo, abrindo alas no Cemitério São João Batista. Abraçada a um punhado de flores que vão se esbagaçando pelo caminho. Os foliões saltitam entre pétalas e lápides.

“E os meus olhos ficam sorrindo, e pelas ruas, vão te seguindo, mas mesmo assim, foges de mim...”

A banda toca “Carinhoso” diante do túmulo de dona Camélia. Aurora enfim consegue se despedir de sua tia-avó.

Daqui para onde, insistem os músicos. Eu não sei, lamenta.

Um deles assopra uma mão cheia de purpurina nos olhos de Aurora. Ela não consegue enxergar nada.

Alguém a chama pelo nome. Aurora. Um ponto de luz se arreganha no breu. Aurora, você tá bem?

Aurora abre os olhos. O rosto coberto de purpurina. Está no epicentro de um bloco de Carnaval, ombro a ombro com uma imensa multidão. Sua amiga preocupada, Aurora quase perdeu os sentidos. Aurora respira fundo. Foi uma bad trip, mas já passou.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

O golpe de 2022 será com armas

Com ironia, aqui vai um alerta de gatilho (literalmente): todos os fatos futuros narrados aqui jamais ocorrerão e as instituições estão funcionando perfeitamente. Todos os fatos pretéritos, no entanto, ocorreram. Vejo a panela em que o sapo da democracia, lentamente, cozinha. Ali está o sapo banhando-se na água do autoritarismo, como quem flutua na santa paz de um mercado e de um centrão felizes, apesar de você.

30 de outubro de 2022. Quando Jair Bolsonaro perdeu o segundo turno da eleição presidencial com 45% dos votos, apesar do apoio em segundo turno do DEM e do PSDB, de uma oposição dividida e de fake news de fraude eleitoral, as coisas começaram de fato a ficar feias. Não que elas já não estivessem feias, dadas as 400 mil mortes pela pandemia e a vacinação que deslanchou só em 2022. Carnaval em 2022, como no ano anterior, não houve.

Tal qual um tenentismo 2.0, a revolta começou entre militares. O fogo de palha estava nos 12% dos policiais militares, que uma pesquisa de julho de 2020 já mostrara serem favoráveis a prender ministros do STF e fechar o Congresso. Os outros 88%, poucos afetos à revolta, se juntaram ao movimento, mais por demandas corporativas como aumento salarial do que fé na revolução. Diversos estados viram o motim que acontecera no Ceará em fevereiro de 2020 se espalhar no seu quintal.

O bolsonarismo havia cooptado policiais, em especial depois do decreto que, no meio do carnaval de 2021, os autorizou a terem duas armas de uso restrito, e facilitou a aquisição de armamentos pesados que antes constavam da lista de produtos controlados do Exército. Mais armas em circulação e menos controle é igual a mais armas com o crime organizado e as milícias.

De início, a revolta sofreu resistência dos novos generais das polícias militares, cargo recém-criado pela nova lei orgânica das PMs, adotada no final de 2021 com a bênção do arenão de Lira e Pacheco.

Independentes por lei de seus governadores, os comandantes das PMs decidiram apoiar, com relutância, o desvario de seus subordinados. O STF tentou intervir, mas os ministros bolsonaristas na Corte pediram vista, com medo de se repetir aquele premonitório agosto de 2020 em que Bolsonaro ameaçou mandar tropas para o Supremo.

A população, embora desaprovasse em 72% a proposta de armar cidadãos, ficou com medo de protestar. Milícias armadas a serviço do poder de plantão contribuíram para tanto. A alta de 5% dos assassinatos em 2020 fora alimentada por disputas entre grupos armados, impulsionada pelas armas que migraram do mercado legal para o ilegal. Era previsível: 2020 já tinha visto um aumento de 91% no registro de armas em relação a 2019. E o ano seguinte, 2021, fora pior ainda.

O controle de armas se tornou mais raro. Conforme fora estipulado em decreto de fevereiro de 2021, quem escondia fuzis em casa era avisado, 24 horas antes, de qualquer fiscalização. Estado de direito apenas para humanos direitos com fuzil. O que se seguiu foram meses de um governo à base da bala, sangue e medo, como sempre fora.

Dezenas foram mortos Brasil afora, na balbúrdia militaresca, até que a nova presidência tomou posse, com atraso e sem a presença de Bolsonaro, que foi morar entre Atibaia e Barra da Tijuca.

Lá pelos idos de 2023, quando o golpe fracassado de 2022 esmorecer na memória, colunas de jornal dirão que era possível o STF e o Congresso terem revogado os decretos pró-armas, que a escolha não era tão difícil assim, que não faltou quem avisara que a falta de um projeto progressista de segurança nos custaria a democracia, que a frente poderia ter sido ampla, e que o presidente da república deveria ter sido investigado por genocídio.

Em 2023, no entanto, já era tarde. Quem dera estivéssemos em 2021.


Texto de Thiago Amparo, na Folha de São Paulo

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Para mim, o tempo é uma doença que eu contraí vai fazer 47 anos em abril

 Há injustiças que uma pessoa não esquece. Eu devia ter uns 13 anos quando li a célebre reflexão de Santo Agostinho sobre o tempo: “Se ninguém me perguntar o que é, eu sei. Se me perguntarem, ignoro”.

Resolvi dar a mesma resposta, no exame de matemática, à questão: “Um trem percorreu 5/9 do caminho. Sabendo que a totalidade do percurso são 600 quilômetros, quantos quilômetros já percorreu o trem?”.

Nesse dia ficou claro para mim que, embora dizendo ambos a mesma coisa, Agostinho era considerado um santo sábio e eu um demônio ignorante. Portanto, jurei vingança. E prometi que não descansaria enquanto não encontrasse uma definição de tempo melhor do que a de Agostinho.

Eu sei o que o tempo é porque olho para ele todos os dias. Levanto-me, vejo-me no espelho e lá está o tempo, sob a forma de rugas e cabelos brancos. O tempo é uma doença que eu contraí vai fazer 47 anos em abril.

De acordo com o que tenho observado, o tempo não satisfaz ninguém. Quando somos novos queremos que o tempo passe; quando chegamos à meia idade desejamos que o tempo pare; quando
ficamos velhos gostaríamos que o tempo voltasse para trás.

As tentativas de parar o tempo costumam ser perda de tempo. Ainda assim, muita gente tenta. Por exemplo, em Hollywood. Todas as pessoas que tentam parar o tempo se parecem umas com as outras. Nicole Kidman ficou igual a Courteney Cox, que ficou igual a Val Kilmer, que ficou igual a uma boneca que a minha avó tinha na cama, sobre a colcha.

Para evitar que a gente veja o que o tempo lhes fez, ficam com uma cara que diz: “Viu o que o tempo me fez? Olha só como os meus olhos estão tão abertos. Como a pele do rosto fugiu para a nuca. Que ar absolutamente espantado que tenho sempre. Foi o tempo que fez isso. Em conluio com um cirurgião plástico”.

Todas essas estratégias são recentes. No meu tempo, não havia hipótese de fugir ao tempo. Aliás, essa é uma das dificuldades de definir o tempo: cada pessoa tem o seu. E no meu tempo o tempo era melhor.


Texto de Ricardo Araújo Pereira, na Folha de São Paulo