sábado, 27 de fevereiro de 2021

Com mergulho na ficção, livro investiga realidade da violência na Escandinávia

 Doze. Esse, em média, é o número de assassinatos que Oslo, capital da Noruega, registra a cada ano. A mesma estatística vale para Copenhague, na Dinamarca. Em Estocolmo, capital da Suécia, as coisas pioram bastante: 30 homicídios em média. No país todo, 120 por ano.

Na última década, os três países viram crescer os homicídios resultantes da guerra entre gangues. Todos têm dois ou três casos de assassinatos em série espalhados pela história.

A maioria dos crimes, no entanto, resulta de brigas domésticas. Como diz um policial sueco à ensaísta americana Wendy Lesser, "o lugar mais perigoso é a sua cozinha, e a arma mais letal, a sua faca de pão".

Tendo em vista esses fatos, é intrigante que o policial nórdico tenha se transformado num gênero de exportação. Henning MankelStieg Larsson ou Jo Nesbo —todos publicados por aqui— são hoje para a Escandinávia aquilo que Jorge Amado foi para o Brasil em meados do século 20.

Mais intrigante ainda é o fato de que essa ficção seja especialmente brutal, às vezes quase sádica, e tenha um esquadrão considerável de supervilões e monstros sexuais.

Existem, claro, explicações "ready made"Por exemplo: na Escandinávia ordenada, igualitária, com índices incomparáveis de desenvolvimento humano, o noir representaria o "retorno do reprimido".

Ou então a teoria que um jovem garçom de Oslo apresentou à já citada Wendy Lesser: o noir escandinavo é a versão pop da filosofia de Kierkegaard, "uma busca por soluções, sabendo que elas não existem".

Fundadora da revista literária Threepenny Review e autora de vários livros de crítica cultural, Lesser é cautelosa com esse tipo de generalização. Ela começou a ler policiais nórdicos nos anos 1980, muito antes da moda, e nunca mais parou. Depois de quatro décadas devorando dúzias de romances, sentiu que carregava consigo uma Escandinávia imaginária incrivelmente vívida e detalhada. Decidiu escrever um livro, "Scandinavian Noir", para descobrir qual tipo de conhecimento a ficção lhe trouxera.

A primeira parte do livro é um compêndio de temas recorrentes no noir escandinavo, uma mini-enciclopédia que vai do consumo de álcool à xenofobia, da decoração de interiores à violência sexual.

A segunda parte é o diário de uma viagem à Suécia, à Dinamarca e à Noruega, com passagem obrigatória por delegacias. O intuito é averiguar quanto a ficção alterou a realidade.

Lesser descobre discrepâncias significativas, não somente devido às estatísticas sobre homicídios. O ponto de vista quase exclusivamente masculino dos romances, por exemplo, está em claro desacordo com a realidade das delegacias, onde há mulheres em todo tipo de função.

Ela tampouco encontra um motivo palpável para que a violência sexual, especialmente contra crianças, seja tão prevalente nos livros. Estupro e pedofilia online são preocupações da sociedade, mas não no grau obsessivo com que aparecem na ficção.

No fim das contas, porém, a Escandinávia mental de Lesser sobrevive ao choque com o mundo exterior.

Isso porque, sugere a autora, a tradição do policial nórdico teve a sorte de ser inaugurada, nos anos 1960, por um duo de realistas incrivelmente talentosos: Maj Sjöwall e Per Wahlöö, autores a quatro mãos dos mistérios do agente Martin Beck. Depois deles, cada nova geração de escritores continuou acrescentando, consciente ou inconscientemente, elementos a um mesmo quadro.

Assim, apesar de a ação dos livros ser quase sempre exagerada, e às vezes até delirante, a descrição dos cenários, dos costumes e dos rituais cotidianos é tão sólida que os enredos são redimidos, e a realidade se impõe. Na Escandinávia, diz Lesser, a ficção é, sim, um bom guia para o real.


Texto de Carlos Graieb, na Folha de São Paulo


SCANDINAVIAN NOIR

  • Preço R$ 96,93 (288 págs.)
  • Autor Wendy Lesser
  • Editora Macmillan Publishers

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