terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Quesito: Carnaval 2021. Nota: zero!

Zulmira Cruz é famosa uma vez por ano, na Quarta de Cinzas, quando o mundo já está combalido, ressacado e deveria estar pedindo água, mas está pedindo X-Tudo no delivery.

A fama de Zulmira Cruz é mais curta do que Andy Warhol previu. Ela tem exatos dois segundos e meio de fama, no momento em que seu nome e sua foto 3X4 tirada em 1999 aparecem na tela do maior canal de TV do país, no momento em que são apresentados os jurados de fantasias das escolas de samba do Grupo Especial do Rio.

Zulmira Cruz mora na cinza da fama eventual: pode andar pela rua sem medo de ser importunada por pedidos de selfie. Mas, uma vez por ano, é reconhecida pelo porteiro com um sorriso especial. Um sorriso que significa que ele a viu na TV, mesmo que por dois segundos e meio, e a reconheceu. Reconheceu sua importância desconhecida.

Assim como Sabrina Sato, Zulmira Cruz trabalha o ano todo para chegar tinindo no Carnaval. Faz hidroginástica três vezes na semana para aguentar a maratona que é ficar sentada num camarote da Marquês de Sapucaí, comendo coxinha fria e analisando cada paetê, o tingimento de cada pena de faisão, e atribuir a eles a justa nota, nem um décimo a mais ou um décimo a menos.

Mas, na Quarta de Cinzas de 2021, Zulmira sabe que sua fama morreu. Pelo menos por um ano. Entre milhões de mortes importantes, o vírus fez uma vítima irrelevante: os dois segundos e meio de fama anual de Zulmira Cruz.

Quando ela liga a TV, no horário em que os jurados do Grupo Especial deveriam estar destilando seu conhecimento técnico, há uma reprise de Laços de Família. Vera Fischer está sugando a língua de Reynaldo Gianecchini no momento em que seu estômago revira —ela não está enojada pela cena de amor de idades distintas, cada um faz o que bem entender, e ela mesma já teve seus garotões. O que a enoja é a ausência do seu rosto na tela. Que vai se desdobrar na ausência do sorriso do porteiro na manhã seguinte e na ausência da moça do caixa do supermercado Guanabara, que vai pensar em perguntar: “Vem cá, você não é a…”, mas vai desistir no meio da frase.

É a primeira Quarta de Cinzas que Zulmira Cruz dorme até o meio da tarde. Dorme porque não há nada para fazer no dia mais morto do ano, a não ser se fazer de morto. Acorda sem saber quando e onde está. E se dá conta de que está na quitinete térrea em Copacabana, onde mora desde que se aposentou como costureira na grife Frankie&Amaury e passou a trabalhar para escolas de samba, só para não morrer de tédio.

E, de tão famosa que ficou nos pavilhões, acabou pinçada dez anos atrás para ser jurada. Enche o copo americano na cafeteira. Dá um gole e sente um gosto amargo que oito gotas de Assugrin não conseguem disfarçar. Zulmira Cruz se sente cansada, com dor no corpo, na cabeça e na alma. Não estivesse isolada há 365 dias, poderia achar que estava com Covid. Mas ela sabe que aquele peso é só o luto de um Carnaval que não houve. Há tantos lutos mais importantes, ela pensa, e se sente uma idiota.

Zulmira Cruz tenta prestar atenção na novela. Mas nem o torso desnudo de Reynaldo Gianecchini consegue manter seu foco. Na cabeça, ela ouve o eco dos números das 585 notas de nove quesitos caindo como bombas sonoras sobre a Marquês de Sapucaí.

Dispersa na sua tristeza, Zulmira Cruz vai para a janela. Pega o jornal O Dia do dia anterior e traça nele linhas horizontais paralelas, de cima a baixo. Repara no musculoso que passa, a máscara tapando a covinha em vez das narinas. Então começa a escrever. E a sorrir de novo. Na sua mente, a voz de trovão de Jorge Perlingeiro narra cada nota que dá para cada pessoa que passa na rua.

“Quesito: posicionamento de máscara. Nota… zero!”

“Quesito: egoísmo juvenil. Nota…. Nove ponto nove!”

Zulmira Cruz coloca a mão no rosto, se sente idiota de novo, mas desta vez sorri da própria bobagem. Ela pode ter perdido um ano de trabalho. Mas ainda não perdeu seu dom.


Texto de Chico Felitti, na Folha de São Paulo

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