Na semana passada falei de como o olhar da linguística —e em especial da sociolinguística— é iluminador e iluminista num país tão desigual.
Falta entender por que sua mensagem, mais consistente que a da gramática normativa, é mal compreendida pelo público. Acredito que isso se deva a uma guerra cultural —ou seja, diálogo de surdos— semelhante à que sequestrou o debate político.
Em 20 anos como colunista de língua, recebi muitas mensagens de leitores “normativos” furiosos com minhas abordagens históricas: “Papo furado, só quero saber se é erro ou não!”
Igualmente coléricas foram as mensagens de leitores com formação sociolinguística sempre que eu recomendava modos de não perder ponto na prova: “Está provado que não existe erro, estude mais!”
Há alguns dias saiu no blog da Companhia das Letras um interessante artigo de Caetano Galindo, professor de linguística da Universidade Federal do Paraná e um dos maiores tradutores brasileiros.
Após dizer que sabe serem inevitáveis as mudanças linguísticas e tal, Galindo pede licença para “dar vazão ao lado ‘tio mal-humorado’” e faz uma lista cômica de usos contemporâneos que lhe arranham os ouvidos.
O clímax: “Mas pouca coisa me deixa mais de olho virado que ‘ser sobre’. Tipo ‘não é sobre masculinidade, é sobre empatia’”. Galindo tem minha solidariedade.
Não só na intolerância específica ao modismo do “ser sobre” —decalque mal aclimatado de uma construção do inglês que na língua brasileira seria algo como “ter a ver com”—, mas no espírito todo do seu artigo.
A capacidade de abordar temas complexos sob múltiplos pontos de vista anda em falta nas conversas em geral e nas que tratam da língua em particular.
A língua é um patrimônio coletivo do qual cada falante se apropria de modo profundamente pessoal. Há muitos discursos possíveis sobre ela, além do linguístico —o poético, o educacional, o afetivo, o lúdico etc.
Seria um debate produtivo aquele que permitisse a manifestação de vários pontos de vista, não para equalizá-los (há muita bobagem que deve ser refutada), mas para propiciar novas sínteses.
Supor que apenas um grupo tenha o que dizer sobre as palavras é como decretar o corpo humano propriedade exclusiva dos fisiologistas, mandando calarem a boca os coreógrafos, os desenhistas, os esportistas e os amantes.
A crítica de Galindo ao “ser sobre” não é linguística, é cultural. Vinda de um tradutor que recita de cor o “Finnegans Wake”, tem o valor extra de excluir a xenofobia.
Dirige-se a um país que tem dado mostras seguidas de baixa autoestima linguística, problema inseparável da educação capenga, da alfabetização precária e de pífios índices de leitura.
A língua culta da vida real —não confundir com a língua padrão dos normativos— é fundamental. Tratar um artefato cultural tão sofisticado apenas como imposição de classe e veículo de preconceito é ver metade do problema.
Em vez de interditar o debate sobre a língua que escrevemos, martelando o clichê “erro não existe”, que tal nacionalizá-la de verdade, espanar teias de aranha, entulhos lusófilos, cafonices juridiquentas, regrinhas arbitrárias?
As futuras gerações de brasileiros merecem um instrumento mais afinado e funcional —e menos dependente de estrangeirismos mal assimilados, menos entrópico e desleixado, mais bem escrito— com o qual pensar o mundo.
Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo.
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