Quando às vésperas da eleição de 2018, o à época comandante do Exército brasileiro, Eduardo Villas Bôas, fez em uma rede social clara ameaça ao STF, pude me dar conta do avançado estado de decomposição política e institucional em que o Brasil se encontrava. A declaração do general, viríamos a saber por ocasião do lançamento de livro-depoimento, foi articulada pela cúpula do Exército a fim de interferir no julgamento de habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Lula. Esse fato simbolizou, a meu ver, o fim da esperança de que o Brasil, finalmente, exorcizara o espírito antidemocrático que sempre o acompanhou.
O episódio que envolveu a pressão dos militares sobre o Judiciário é relevante porque indica, mais uma vez, que parte do Brasil perdeu completamente a vergonha e, com isso, qualquer noção de limite. Mesmo depois desse episódio, continuamos levando a vida como se nada tivesse acontecido, como se fosse normal chamar de democracia um país em que um homem fardado que comanda centenas de milhares de outros homens armados “tuite” sua opinião a respeito de um processo judicial em andamento. Em termos de comparação, o também general e comandante de Exército —só que do Uruguai— Guido Marini Ríos, foi preso em setembro de 2018 por emitir opiniões sobre a reforma da previdência e finalmente demitido em 2019 pelo então presidente Tabaré Vázquez por tecer críticas ao Judiciário.
Mas essa falta de limites não nasceu da noite para o dia. É preciso um ambiente de muita perversão política para que se tome discurso de ódio por “liberdade de expressão” e promoção da desordem autoritária por exercício da democracia. E há um elemento essencial para que o ódio à democracia ganhe forma institucional: o olhar complacente do sistema de justiça, do Congresso Nacional, da grande imprensa e desta entidade quase mística chamada “mercado”. São essas mesmas entidades que irão se mostrar surpresas —ou mais tarde arrependidas— quando a besta que alimentaram lhes morder a mão.
Como diz Wanderley Guilherme dos Santos em “A Democracia Impedida”, no Brasil “nem os liberais morrem de amores pela democracia, nem os empresários são apaixonados pelo livre mercado”.
Para nós brasileiros, se a democracia formal não é algo usual, o que dizer então de uma cultura democrática. Convivemos tranquilamente não apenas com a violência e o autoritarismo, mas também com discursos normalizadores da violência na forma de políticos histriônicos e apresentadores de TV que pregam o assassinato, em rede nacional, a tortura e até a eliminação física de adversários políticos.
A crise econômica e política pela qual passamos faz com que, nas palavras de Luiz Antonio Simas, o empreendimento de ódio que caracteriza o Brasil institucional se torne ainda mais letal do que costuma ser. E se o Brasil se constituiu como uma máquina de matar e de desorganizar o povo é esperado que não tenha limites e, portanto, a necessária vergonha.
O Brasil institucional e as “elites” não tem vergonha de odiar o próprio povo, ainda mais se pobre, negro ou indígena. O Brasil não tem vergonha de fechar o Congresso, até porque, como lembrou o historiador Julio Vellozo, o Legislativo já foi impedido de funcionar outras vezes, o que já nos lega uma verdadeira
“tradição antidemocrática”.
O Brasil não tem vergonha de perseguir juízes ou de colocá-los para perseguir alguém. O Brasil não tem vergonha da tortura. O Brasil não tem vergonha de manter no poder um presidente que se recusa a governar o país durante uma crise sanitária sem precedentes e que lembremos, quando deputado, louvou um torturador dentro do Congresso Nacional. O Brasil não tem limites. O Brasil é sem vergonha.
Texto de Silvio Almeida, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário