terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

A expectativa da Morte era igual à dos demais negacionistas da madrugada

 Arrumava-se diante do espelho enquanto seu próprio reflexo a julgava. Ao longo do último ano, sua rotina se resumia a uma batida sobre-humana de trabalho. O certo seria ficar em casa descansando, mas quem está disposto a fazer a coisa certa em um sábado à noite?

Naquele fim de semana, pensando no bem de sua saúde mental, ela se permitiu enlouquecer e aceitou o convite para uma festa.

Um convite irrecusável, diga-se de passagem, ainda mais para ela, que sempre foi deixada de fora em comemorações e chamada de “espalha rodinha” pelas costas. Mas o mundo gira, para decepção dos terraplanistas, e agora era ela a convidada de honra de um evento para milhares de pessoas.

Sim, um evento de grande porte, com 12 horas de duração, DJs renomados, duas pistas de dança, área VIP e área VIP dentro da área VIP. Com uma infraestrutura dessas, a festa nem parecia clandestina.

Sim, era uma festa clandestina, mas seguindo todos os protocolos de segurança: uso obrigatório de máscaras, a não ser que você estivesse segurando um copo; distribuição de álcool para os convidados, também conhecida como open bar, e, claro, o distanciamento social, que se aplica apenas aos seguranças do evento isolados em um canto, evitando abordar quem quer que seja.

Na dúvida de qual roupa escolher, ela optou pelo pretinho básico, elegante e discreto. Valorizou o look no acessório, uma foice de quase dois metros de altura, polida à exaustão. Estava pronta para brilhar. Pediu um Uber, pois chegar à porta de uma festa montada num cavalo zumbi já chamaria a atenção demais.

Todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite. A expectativa da Morte era a mesma da dos demais negacionistas da madrugada: ignorar a pandemia e se divertir um pouco.

Foi muito bem recebida com bebidas que piscam e pulseirinhas VIP que a permitiam circular livremente pelo evento, mas não conseguiu relaxar. Ser a atração principal de uma festa pandêmica trazia consigo grandes responsabilidades e o dever a chamava mais uma vez. Se arrependeu de não ter cobrado cachê. Pelo menos não voltou lisa para casa.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

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