domingo, 7 de fevereiro de 2021

O Barba

A gente tem sofrido tanto com as consequências nefastas dos atos de um único ser humano ruim sobre a humanidade que acaba se esquecendo do contrário: uma pessoa boa melhora o chão em que pisa.

Principalmente se, no contato do pé com o solo, produzir música. Era o caso do Barba, fundador do Barbatuques, conjunto musical que usa apenas o corpo como instrumento. (Exceção feita ao berimbau de boca, um objeto curiosíssimo presente em mais de 40 culturas desde, pelo menos, o século 4 d.c.).

Dê a si próprio um presente neste domingo: digite “Barbatuques” no Youtube.

Eu conheci pouco o Barba, mas ele mudou a minha vida.

Antes do Barbatuques, o Fernando (era esse o nome dele) tinha fundado, com outros músicos igualmente talentosos, o Auê —núcleo de ensino musical. Foi ali que cheguei em 1994, aos 15 anos, absolutamente desprovido de qualquer talento rítmico, para ter aulas de bateria. (O Guilherme Kastrup, um dos melhores bateristas que eu já vi tocar, fez o possível para me ajudar, mas eu era um caso perdido).

Nas aulas de musicalização do querido Buja tampouco evoluí nas baquetas, mas encontrei minha turma. Mudei pra escola deles. Comecei a namorar e me aprumei numa adolescência que até então ia de mal a pior.

Nas férias de julho, fui com aquela turma pra Itaúnas, norte do Espírito Santo, quase Bahia. Barba, Buja, Hosoi e o resto da trupe do Auê estavam lá. Para adolescentes que gostavam de música, instrumentistas profissionais de vinte e tantos anos eram super-heróis; e os super-heróis nos tratavam de igual pra igual.

Almoçar na mesa do Barba e dos amigos dele no restaurante da Tereza era como comer com Romário e Bebeto —que veríamos ganhar a Copa ao final daquela viagem, na pousada do Paulinho, tomando Cipó Cravo.

Voltando de Itaúnas, xote, maracatu e baião, tudo isso Barba trouxe no seu matolão —o pessoal do Auê passou a tocar forró no Remelexo. O revival do forró em São Paulo e no Rio, nos anos 90, portanto, também tem a mão do Barba. E o pé. E a boca.

O Cris Scabello, hoje guitarrista do Bixiga 70, era aluno do Auê e tocava com os caras no Remelexo, apesar de ter apenas 15 anos. Eu e meu amigo Fábio trabalhávamos como roadies do Guilherme Kastrup. Devo ao Gui, ao Barba, ao Buja e ao Hosoi a glória de haver pronunciado, algumas vezes, uma das mais belas frases em qualquer língua: “estou com a banda”.

Então entrávamos na casa de shows e passávamos por garotas lindas cheios de panca, carregando cases de pratos Zildjian. Boa parte dos escassos beijos que dei na adolescência, veja só, também devo ao Barba.

Músicos como Tulipa e Gustavo Ruiz, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Céu, Mariana Aydar, Monica Salmaso e muitos outros foram diretamente influenciados por ele. O Cris Scabello diz que se tornou guitarrista por causa do Barba.

O Bixiga 70, com sua mistura épica de Brasil, África e black music, toca nos principais festivais do planeta. Em 2014 o Bixiga 70 apresentou-se para 10 mil pessoas em Rabat, Marrocos. Não é improvável que ao menos um casal tenha se formado na plateia.

Agora mesmo, talvez, haja um garotinho ou garotinha, filho daquela noite, escutando música e dançando num quarto em Rabat. Essa criança não sabe nem jamais saberá, mas o prazer que sente ao ouvir a música e mover seu corpo, deve em parte a um sujeito do outro lado do Atlântico que se chamava Fernando Barboza.

Concentremo-nos nisso: também a beleza é contagiosa.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

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