terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

O Carnaval foi cancelado e a realidade é mais esquisita do que o sonho

Aurora vaga de pijamas, sob o sol acachapante de 11h45 no centro. Não se vê vivalma nas ruas e avenidas. Ela persegue o som abafado de uma marchinha, que toca em algum lugar por ali. O pé embola na serpentina, está chegando perto.

Em um cruzamento na Rio Branco, uma pequena banda besuntada em purpurina parece aguardá-la. Aurora se aproxima dos músicos. É quando leva as mãos ao rosto e percebe que se esqueceu de botar
sua máscara de proteção.

Aurora abre os olhos. A realidade é ainda mais esquisita do que o sonho.

Carnaval foi cancelado. E ela divide sua cama com aqueles quatro músicos fantasiados, sem fazer a mais vaga ideia de como foram parar ali.

É hora de acordar, é terça-feira de Carnaval, é o fim da aventura humana na Terra. Eles tocam, batucam e dançam sobre o colchão. Aurora teme por seu lençol de 300 fios e por sua saúde mental.

Tenta expulsá-los do apartamento, mas a banda só se comunica em “folião language”. Aos roucos berros, indagam onde está o Boi Tolo, daqui para onde, essa água é água mesmo ou...? Aurora pensa em ligar para a polícia, mas percebe que seu celular desapareceu.

Ela não consegue impedi-los de invadir o quarto de sua tia-avó, no fim do corredor. Lá dentro, a banda encontra somente uma cama hospitalar vazia.

Aurora enfia a cara em uma máscara e foge do apartamento. Os músicos seguem atrás dela. Penduram-se nas barras do metrô feito crianças no trepa-trepa, mas só Aurora parece se importar com a presença deles e vice-versa.

Aperta o passo, abrindo alas no Cemitério São João Batista. Abraçada a um punhado de flores que vão se esbagaçando pelo caminho. Os foliões saltitam entre pétalas e lápides.

“E os meus olhos ficam sorrindo, e pelas ruas, vão te seguindo, mas mesmo assim, foges de mim...”

A banda toca “Carinhoso” diante do túmulo de dona Camélia. Aurora enfim consegue se despedir de sua tia-avó.

Daqui para onde, insistem os músicos. Eu não sei, lamenta.

Um deles assopra uma mão cheia de purpurina nos olhos de Aurora. Ela não consegue enxergar nada.

Alguém a chama pelo nome. Aurora. Um ponto de luz se arreganha no breu. Aurora, você tá bem?

Aurora abre os olhos. O rosto coberto de purpurina. Está no epicentro de um bloco de Carnaval, ombro a ombro com uma imensa multidão. Sua amiga preocupada, Aurora quase perdeu os sentidos. Aurora respira fundo. Foi uma bad trip, mas já passou.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário