"Bom dia e sejam todos bem-vindos ao nosso grupo de apoio aos problematizadores anônimos. O meu nome é..."
"Desculpa interromper, mas, você disse... bom dia ou...?"
"Algum problema?"
"Só acho um pouco insensível da sua parte utilizar um adjetivo de conformidade em um momento tão delicado, nem todo mundo está tendo um dia bom. Ignorar o contexto no qual estamos inseridos, reféns da omissão criminosa do governo no meio de uma pandemia, é perpetuar o discurso da positividade tóxica que acaba prejudicando ainda mais a saúde mental das pessoas."
"Qual o seu nome?"
"Jéssica."
"Pessoal, a Jéssica está há oito segundos sem problematizar e isso já é um grande avanço. Parabéns."
"Qual é o problema de problematizar?"
"A problematização é fundamental para combater estruturas de opressão, violência, e silenciamento, mas..."
"Mas? Como assim mas? Só falta você dizer que o mundo está chato."
"Não é o mundo que está chato. Você abriu o Twitter? Tem acompanhado esse BBB?"
"Olha, eu sou a favor da problematização. Mas problematizar a problematização em si, aí já é demais."
"Então você está problematizando a problematização da problematização. Entende onde está o problema?"
"Não."
"Exato. O problema é quando a problematização sai do controle e nada mais faz sentido. A nossa conversa é um exemplo disso."
"Acho problemático partir da nossa experiência pessoal para abordar uma questão que diz respeito à sociedade como um todo."
"Jéssica, eu era assim, como você. Entrava em uma problematização sem fazer a menor ideia de como, e quando, sairia dela. Perdi amigos, oportunidades de trabalho, até meu autocontrole."
"A culpa não é minha, o Brasil me obriga a problematizar."
"Eu sei. Por isso criei esse grupo de apoio. É um momento crítico para pessoas como nós. Todas as vezes em que o Bolsonaro abre a boca, os amigos que postam fotos em festas como se tivessem furado a fila da vacina, e agora, como se não bastasse, o BBB. A gente se sente como um diabético na loja de doces."
"Essa comparação, além de desrespeitosa com quem sofre de diabetes, reforça o estereótipo de que o diabético não pode comer doces, quando basta seguir uma dieta balanceada com supervisão de um nutricionista."
"OK, desisto. Quem vocês acham que sai no paredão?"
Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo.
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