sábado, 27 de fevereiro de 2021

Minha maior herança foi a culpa, diz Luiz Schwarcz, que lança livro sobre depressão

O editor Luiz Schwarcz há muito tempo queria escrever um livro sobre seu pai. Tateou a ideia com abordagens cautelosas, algumas frustradas, outras não —até que percebeu, numa epifania nos Alpes, que sua própria vida se juntava à dele.

Foi a origem de uma autobiografia que adianta no subtítulo ser a “história de uma curta infância e de uma longa depressão”. Um livro sobre a doença com a qual foi diagnosticado, diz Schwarcz, “é quase igualmente, ou até mais, um livro sobre o meu pai”.

“Eu digo que a minha maior herança foi a culpa, apesar de meu pai ter sido um homem extremamente generoso. Ela está no centro da minha vida desde o momento em que meus pais depositaram em mim… Ou, é mais correto dizer, eu senti a responsabilidade sobre os meus pais tão cedo.”

“O Ar que me Falta”, cujo título é inspirado por um dos sintomas de episódios depressivos, relembra a época em que o poderoso editor, fundador do maior conglomerado de livros do país, a Companhia das Letras, era um garoto.

A história de seu crescimento vem sobrecarregada por inseguranças, pelos conflitos conjugais de casa e pela indigerível memória de um avô húngaro enviado a um campo de concentração na época da Segunda Guerra Mundial.

O pai, André, conseguiu escapar e migrar para o Brasil, mas o peso da culpa foi repassado às sucessivas gerações dessa família judia. André confidenciou a Luiz em dois momentos decisivos que estava no mesmo trem que carregava o avô, Láios, em direção ao provável extermínio. O homem mais velho encontrou uma brecha e o chutou para fora do vagão —“Foge, meu filho, foge”.

A escolha por narrar a vida de seus antepassados por uma lente autobiográfica soou a Schwarcz como a mais acertada, já que a ânsia por escrever, diz ele, “era uma resposta tardia a um silêncio angustiante que vem desde a minha infância”.

A obra relata como o empilhamento dessas ansiedades avançou para diagnósticos de depressão e bipolaridade, hoje controladas depois de anos de acertos e erros com psicólogos e psiquiatras.

O editor não se furta a confessar trechos violentos, como uma tarde em que acabou ferindo a si mesmo. “Não creio que tenha sido de fato uma tentativa séria de suicídio, e sim um ato de desespero, para chamar atenção”, escreve.

E inclui episódios que tiveram repercussão pública, como o soco que desferiu num homem que o ofendeu em uma plateia da Flip, há dois anos. Questionado sobre um possível caráter de prestação de contas que a biografia ganha diante de casos como esse, ele diz achar a pergunta correta.

“Sou um bipolar muito leve, tenho poucos momentos de descontrole. Mas tenho. Estão narrados no livro. Nesses momentos, eu sinto um profundo arrependimento social, empresarial, o que quer que seja. O episódio da Flip está narrado como um deles, assim como um outro em que gritei de maneira totalmente descontrolada com uma funcionária —foi a única vez na minha vida, mas claramente perdi o controle.”

Discutir esses eventos faz com que Schwarcz volte ao tema da culpa. “Em um minuto escrevi uma carta de desculpas para todos os funcionários. Liguei para os meus sócios ingleses. Fiquei muito mal também por ter me descontrolado na Flip, embora a maioria das pessoas tenham dito que, no meu lugar, também se descontrolariam. Mas o bipolar sempre tem a culpa ali, de sobreaviso.”

O sentimento também está ligado, segundo ele, a um traço de arrogância —de se achar responsável pelo mundo, por resolver todos os problemas e amarrar todos os fios.

É uma certa busca por manter tudo sob controle, que se manifesta também durante esta entrevista, quando o editor sugere cortar partes excessivamente longas de suas respostas e, depois, numa mensagem gentil ao repórter por WhatsApp, pede para corrigir oralidades que tenham escapado nas falas.

É de se pensar o quanto esse rigor afetou o processo de preparação do livro. “Sou um escritor que necessita de edição. O meu texto precisa de diálogo, especialmente nesse livro, que saiu de maneira muito forte e rápida.”

Schwarcz conta que, logo no início da pandemia, passava quase 18 horas por dia escrevendo de maneira compulsiva. “Não consegui escrever esse livro com melancolia, ele foi escrito em mania. Como se fosse uma coisa que estava sendo escrita por 60 anos. Então precisou de um respiro.”

Ele credita o produto final a um intenso processo coletivo da equipe da editora e às leituras de sua mulher, Lilia, e seus filhos, Júlia e Pedro. E reconhece incentivos de figuras como o médico Drauzio Varella, que se tornou uma espécie de mentor da obra. “Ele disse que ajudaria as pessoas a verem que, por trás do sucesso, pode ter também muito sofrimento.”

Sem dúvida uma narrativa que aborda a saúde mental de forma franca pode ajudar a dirimir alguns estigmas. Mas é com igual franqueza que Schwarcz responde se esse foi o estímulo que moveu o livro.

“Durante o tempo em que escrevi, estava muito imbuído dessa ideia de ajudar as pessoas deprimidas. Mas, com toda a sinceridade, essa justificativa para escrever o livro é completamente furada.”

“Para ser honesto com o leitor, tenho que dizer que escrevi para mim mesmo”, completa. “Para transformar uma coisa muito difícil pela qual passei no objeto do meu trabalho e veneração, o livro.”


Resenha de Walter Porto, na Folha de São Paulo

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