Clubes esportivos buscam atrair jovens muçulmanas
Lukas Eberle
Sebastian Eder
Cathrin Gilbert
Apesar de muitos atletas de ponta alemães virem de famílias de imigrantes, muito poucas muçulmanas na Alemanha praticam esportes. Muitos pais veem a cultura de esportes ocidental como uma ameaça e mantêm suas meninas longe dos clubes esportivos. Algumas iniciativas, contudo, mostram como as jovens muçulmanas podem ser estimuladas a participar dos esportes –e como isso pode mudar suas vidas.
Ela teve que reunir toda sua coragem para posar para uma fotografia com uma bola de basquete debaixo do braço, uma atleta usando lenço na cabeça, em um lugar no qual tinha sido proibida de entrar: um ginásio.
Sara K. tenta sorrir. Ela não sabe como seu pai vai reagir à foto. Ela diz que ele levanta a mão com facilidade. Sara, 20, nasceu em Berlim. O pai dela é da Argélia e a mãe é alemã que se converteu ao islamismo. Os pais não querem que a filha pratique esportes e dizem que não é apropriado para uma garota muçulmana.
Apesar do desejo dos pais, Sara vem jogando basquete e futebol secretamente há anos. Ela diz que tem uma sensação de “leveza e independência” quando joga. Mas agora ela não quer mais se esconder o fato que está participando de praticando esportes –uma atividade totalmente normal para outras mulheres da idade dela. Ela quer que os pais aceitem a paixão da filha, e por isso está posando para a foto em um ginásio em Kreuzberg, bairro em Berlim que abriga muitos imigrantes e alemães de ascendência estrangeira.
“Quero ser livre”, diz Sara.
Imagem positiva
O esporte geralmente tem uma imagem positiva na Alemanha, onde é visto como forma de promover a saúde e construir o caráter. Os clubes são considerados pilares da sociedade porque, idealmente, são locais onde valores como o espírito comunitário e o jogo justo são transmitidos.
Então, por que alguns pais proíbem as filhas de jogar?
Muitas garotas muçulmanas criadas na Alemanha aprendem que os esportes não são apropriados para as mulheres. Cerca de 68% dos meninos turcos de 15 anos estão envolvidos em esportes organizados. Mais de 30% dos jogadores da seleção de atletas com menos de 17 anos da Associação de Futebol Alemã têm raízes turcas. Os muçulmanos lutam boxe e artes marciais. As muçulmanas, por outro lado, muitas vezes ouvem que se exercitar é perda de tempo. Particularmente os pais mais pobres, que têm menor escolaridade, consideram os clubes lugares de liberdade sem vergonha –locais onde suas filhas não devem estar.
As muçulmanas são as filhas perdidas dos esportes. Elas também sâo um bom exemplo de como a integração pode ser difícil quando as pessoas pertencem a grupos diferentes com visões de mundo muito divergentes.
De acordo com um estudo de 2009 da Universidade Técnica de Dortmund, somente 20% das meninas turcas de 15 anos na Alemanha participam de um clube, enquanto 42% das garotas alemães da mesma faixa etária participam. Para a ciência social, as turcas fazem parte do grupo “distante” do esporte.
“As meninas adoram se mexer”
Ironicamente, as filhas das famílias imigrantes crescem em torno dos esportes. Os 1.200 alunos da escola de ensino médio Carl-von-Ossietzky em Kreuzberg vêm do mundo todo. A educação física é obrigatória para todos os alunos, inclusive as muçulmanas.
“As meninas adoram se mexer”, diz a professora de educação física Gabriele Kremkow. Os pais toleram as aulas porque não querem ameaçar a educação das filhas, mas insistem que “certas condições básicas” devem ser cumpridas.
“Sabemos que, por razões religiosas, muitas muçulmanas têm problemas de praticar esportes na frente dos meninos”, diz Kremkow. Por esta razão, as meninas e meninos têm aulas de educação física separadas do 7º ao 10º ano. As classes só são mistas nas séries mais altas porque, como diz Kremkow, alunos dessa idade podem “refletir sobre as coisas”.
Sara K. graduou-se da Carl-von-Ossietzky há um ano. Além da educação física, ela também fez aulas especiais de basquete e representou a escola nas competições de corrida. Ela dizia aos pais que estava fazendo aulas particulares de matemática.
Quando os pais faziam perguntas, os professores a acobertavam. Kremkow, que faz parte da administração da escola há vários anos, apoia essa abordagem. “Queremos dar às meninas uma oportunidade de curtir a vida”.
Os professores certa vez sugeriram à mãe de Sara que permitisse que a filha entrasse para um clube esportivo. “O senhor já viu uma atleta com lenço na cabeça?”, perguntou a mãe. Para ela, o caso estava encerrado.
Falta de cultura esportiva
No islã, o corpo é considerado um presente de Deus, para ser preservado e fortalecido. Ainda assim, em muitos países do mundo islâmico, os esportes não têm o mesmo significado social que nos países ocidentais. Muitas vezes não há uma cultura de esportes em massa. Na Turquia, o país de maioria muçulmana de maior sucesso nas Olimpíadas, apenas 2% das pessoas são membros dos clubes esportivos –comparados com 34% na Alemanha.
Muitas famílias de imigrantes veem a cultura de clube esportivo na Alemanha como algo muito estranho. Para os pais em particular, os clubes não são uma oportunidade, e sim uma ameaça às filhas.
Umet E. é um senhor baixo e meio careca, que trabalha como zelador em Berlim. Ele mora na Alemanha há muito tempo, fala alemão com a mulher e a filha, e eles assistem à televisão alemã. A filha, que tem 12 anos, aprendeu a nadar na escola. Recentemente, perguntou aos pais se poderia entrar para a equipe de natação.
Umet diz que é importante para uma criança saber nadar bem. Mas ele nunca toleraria que sua filha fizesse parte da equipe. Um estranho poderia abordá-la, diz ele. É algo que o preocupa. Mas ele também teme as reações de amigos e parentes. “Eles iam considerar uma vergonha se nossa filha estivesse por aí de maiô de banho na frente dos alemães”. A família seria desonrada, e ele, o pai, ia perder o respeito. Sua vida na comunidade estaria terminada, diz Umet.
Por anos, os políticos trataram o esporte como um intermediário ideal entre as culturas. As seleções alemãs incluem atletas profissionais com raízes na Turquia, Polônia e Tunísia. Entre os atletas alemães que foram às Olimpíadas de Pequim em 2008, havia 39 de ascendência estrangeira. “Os clubes são nossas escolas de democracia, nas quais os imigrantes podem aprender nossa língua, cultura e comportamento”, diz Maria Böhmer, comissária de integração do governo alemão.
No ano passado, a Chanceler Angela Merkel posou para uma foto com o jogador Mesut Özil no vestiário, após um jogo internacional em Berlim. O meio de campo, cujos avós imigraram para a Alemanha da Turquia, é considerado o principal exemplo de integração de sucesso.
“Eu me considero uma muçulmana moderna”
A chanceler em breve poderá posar para outra foto simbólica. A Copa do Mundo Feminina da Fifa começa na Alemanha no final de junho. Uma das jogadoras da seleção alemã é Fatmire Bajramaj, muçulmana de 23 anos cuja família veio para a Alemanha após Kosovo.
Depois de sua sessão de treinamento matinal, Bajramaj está sentada em um café em Potsdam, no subúrbio de Berlim. Seu cabelo e maquiagem estão perfeitos, e ela usa salto alto. Ela diz que seu pai não queria que ela jogasse futebol. “As roupas sujas, as viagens para os jogos, os meninos nas arquibancadas –não era apropriado para os olhos dele.”
Bajramaj treinou em segredo no clube local, o DJK/VfL Giesenkirchen, e depois forjou a assinatura do pai para obter sua primeira identidade de jogadora. “Tem que ser assim com pais muçulmanos”, disse ela. Ainda assim, ela teve a coragem de se rebelar, lembra-se. “Eu disse: 'Espera aí. Agora vou fazer uma coisa diferente. Vou jogar futebol'. Era um passo extremo. Mas quando ele descobriu o que eu vinha fazendo pelas costas, meu pai ficou surpreso em ver como eu era boa.”
Bajramaj foi recrutada pela seleção com apenas 17 anos. Meio de campo do time FFC Frankfurt, ela é uma das poucas atletas profissionais no futebol feminino. Ela diz que a religião e a fé nunca foram um obstáculo. “Eu me considero uma muçulmana moderna.”, diz Bajramaj. “Rezo com regularidade e jejuo, mas eu também gosto de me divertir de vez em quando ou beber uma taça de champanhe”.
Bajramaj foi nomeada embaixadora da integração da Associação de Futebol Alemã há dois meses. Ela faz palestras nas escolas sobre a força dos esportes na construção do caráter. A comissária da integração Maria Böhmer, membro da União Democrática Cristã (CDU), partido de centro-direita de Merkel, também diz que é “uma questão de direitos iguais”.
Proibição de jujubas
Sob o programa do governo “Integração por meio dos esportes”, estabelecido em 1989, o Ministério do Interior dedica 5,4 milhões de euros (em torno de R$ 12 milhões) por ano para a Confederação Alemã de Esportes Olímpicos que então distribui o dinheiro para esportes específicos que se focam na integração. O dinheiro patrocina vários programas dos clubes, tais como o desenvolvimento de pontos especiais de contato para imigrantes, viagens e treinamento especial para técnicos.
O Fórum de Diálogo Esportivo, uma força tarefa que tem como meta desenvolver estratégias para tornar os clubes esportivos mais atraentes para os imigrantes, vem se reunindo regularmente no Ministério do Interior em Berlim desde 2008. O grupo, que inclui políticos, acadêmicos e membros da associação esportiva, é uma das 11 forças tarefas organizadas sob o Plano de Integração Nacional, ou NIP. Há dois anos, o grupo de Berlim publicou um folheto chamado “Liberalização Intercultural nos Esportes”, que inclui, por exemplo, a sugestão que os clubes não incluam porco no cardápio dos eventos. Ele também adverte contra bebidas alcoólicas e produtos contendo gelatina, como jujubas, nas lanchonetes dos clubes. As sugestões são apresentadas sob o título “lanches culturalmente adequados”.
É difícil dizer se tais medidas alcançam as muçulmanas.
Segregação rígida
O clube alemão clássico, com chuveiros grupais e atividades mistas, não é um lugar fácil para as muçulmanas. Para elas, o islã é uma estrutura dentro da qual ocorre toda sua vida, de forma que regulamentos de roupas e outras segregações se aplicam nos esportes também.
Os dois mundos frequentemente colidem nas piscinas, onde as alemãs usam biquínis e as muçulmanas usam os chamados “burquinis”. Mas muitas não têm como pagar as roupas caras de cabeça aos pés, que custam cerca de 100 euros. Como resultado, ocorrem pequenas catástrofes.
Há dois anos, banhistas muçulmanas geraram alvoroço na cidade de Wolfsburg quando apareceram para uma aula de natação em uma piscina pública com calça legging e camiseta. A supervisora pediu que deixassem a piscina. Uma das meninas, que alegou ter sido forçada a tirar a camisa enquanto ainda estava na água, começou a chorar.
Dieter Kuhfeld, responsável pelas piscinas públicas e instalações atléticas da prefeitura de Wolfsburg, chama o incidente de lamentável. “Mas você devia vir a uma das nossas piscinas abertas no verão e ver quanta roupa as muçulmanas usam”, diz ele. A prefeitura desde então colocou avisos proibindo calças e camisetas nas piscinas públicas.
O resultado mais provável é que menos muçulmanas vão nadar nas piscinas públicas no futuro.
Locais de conflito
As piscinas, ginásios e academias são fontes potenciais de conflito em uma sociedade multicultural –e locais onde as muçulmanas muitas vezes se sentem marginalizadas. “A maior parte dos alemães acha que é completamente normal uma mulher trabalhar como faxineira usando lenço no cabelo. Mas nos esportes, eles olham para você como se fosse um alienígena”, diz Emine Aydemir, personal trainer em Cologne. Ela trabalhou em várias academias durante anos. Com ascendência turca, ela usa lenço na cabeça enquanto faz exercícios. Há quatro anos, cansada de aguentar os olhares e comentários inadequados, ela abriu a primeira academia na Alemanha para muçulmanas. A Hayat gym, no bairro de Ehrenfeld em Cologne, tem chuveiros individuais, cabines para trocar de roupa separadas e uma pequena sala de preces. Homens não entram.
Clubes pequenos que atendem às necessidades das muçulmanas estão surgindo em toda a Alemanha. Mas será que isso é integração, quando as mulheres se segregam?
Vender a integração
Dieter Schwulera acreditou por muito tempo na eficácia dos modelos de integração. Ele foi especialista em integração do Ministério do Interior no Estado da Baixa Saxônia por 15 anos. Hoje, aposentado, ele diz: “Há uma grande diferença entre a vida real e as coisas que os políticos lançam em planos e estratégias”.
Schwulera é presidente do clube esportivo Borussia Hannover. As instalações do clube ficam em Vahrenheide, um bairro onde metade dos moradores são imigrantes ou de famílias estrangeiras. Cerca de 80% dos jogadores das divisões de júnior do clube são de famílias imigrantes.
A integração não pode ser mandada, acredita Schwulera. “Acontece automaticamente e incidentalmente –se tivermos sorte”, diz ele. Todo ano, o presidente da Borussia visita escolas de ensino fundamental na região para promover o clube entre os pais muçulmanos. “Muitos imigrantes simplesmente não conheciam o conceito de esportes de massa em seus países de origem”, diz Schwulera.
Para lidar com essa deficiência, ele explica por que são necessários formulários, taxas e carteiras de identidade. Ele também mostra aos pais que o Borussia é um clube que atende as necessidades das muçulmanas. Há cabines para trocar de roupa que podem ser trancadas e chuveiros individuais que só são acessíveis de um lado do prédio. “Isso tira parte dos temores dos pais”, diz Schwulera.
Atualmente, há cerca de 50 muçulmanas jogando nas equipes do Borussia Hannover.
Especialistas discordam em torno do tema se o esporte promove a integração. O sociólogo Michael Mutz, da Universidade Livre de Berlim, estudou a questão dos imigrantes nos esportes pelos últimos quatro anos. Ele diz que ser membro de um clube não melhora “a disposição de estudar arduamente na escola”, nem há evidências de que leva ao declínio da “propensão à violência”. De acordo com Mutz, “as esperanças dos políticos e dos clubes são exageradas e pouco realistas neste respeito”.
Cruzando uma fronteira
Heather Cameron discorda. Nascida no Canadá, ela é professora de educação de integração. Ela mora no bairro de Neukölln há 14 anos e foi lutadora de boxe da cidade de Berlim. Ela fundou um clube de boxe para mulheres, o Boxgirls, há seis anos.
Cameron chama o ginásio do clube, que é do tamanho de uma sala de estar, de “laboratório”, que tem um poster do Rocky Balboa pendurado na parede e 10 sacos de pancadas pendurados em correntes de ferro presos ao teto. Algumas das meninas e mulheres que treinam na academia de Cameron usam lenços na cabeça. E algumas das mulheres aprenderam seus primeiros fragmentos de alemão na academia, mesmo após terem morado na Alemanha por anos. “Quando uma muçulmana está no ringue, ela está cruzando uma fronteira. É algo que pode ser transferido para sua vida fora da academia”, diz Cameron.
O boxe é o tipo de esporte que os muçulmanos toleram mais para suas filhas –por razões práticas. “É diferente de outros esportes porque os pais não veem o boxe como jogo ou entretenimento. Para eles, o boxe dá às filhas uma chance de defenderem sua honra. Isso é importante para os pais. É por isso que permitem que suas filhas treinem”, diz Cameron.
Algumas vezes, quando os pais estão preocupados demais, Cameron faz uma visita à família. Ela explica que os homens só podem entrar no ginásio se for combinado antes e que há vestiários separados e que ninguém passa vergonha em sua academia.
Mundo de mente estreita
Teria sido bom se Sara K., a atleta clandestina de Neuköln, tivesse um ambiente como este do Boxgirls. Em vez disso, estava só –só com a contradição absurda de viver em um mundo no qual os esportes são considerados totalmente normais, mas não para ela.
Sara eventualmente se rebelou contra o mundo de mente estreita dos pais, um mundo cheio de dificuldades que a vida guarda para uma jovem muçulmana em Neukölln. Desde então, contudo, esse mundo voltou a dominá-la.
Ela queria estudar arte, mas seus pais tinham outros planos. Eles recentemente a levaram para a Argélia, onde se casou com um primo de segundo grau em um casamento arranjado. Ele virá à Berlim em breve. Enquanto isso, Sara trabalha em um call center durante o dia e como arrumadeira em um hotel à noite.
Talvez os esportes sejam ao menos uma diversão para ela no futuro.
Traduzido do alemão por Christopher Sultan e do inglês por Deborah Weinberg
Texto da Der Spiegel, reproduzido no UOL.
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