quarta-feira, 1 de junho de 2011

A Primavera Árabe pode fracassar

Primavera Árabe pode fracassar

Ativistas lutam para impor sua noção de cidadania

Por ANTHONY SHADID
e DAVID D. KIRKPATRICK

Beirute, Líbano
As revoluções e revoltas dos últimos meses no mundo árabe se mostram tão inspiradoras para tanta gente, pois oferecem uma nova noção de identidade nacional, baseada no conceito de cidadania.
Mas, de algumas semanas para cá, o espectro das divisões -a religião no Egito, o fundamentalismo na Tunísia, o sectarismo na Síria e no Bahrein, os clãs na Líbia- ameaça os levantes que pareciam prenunciar uma solução para questões que assolam o mundo árabe desde a era colonial.
Dos becos fétidos de Imbaba, o bairro do Cairo onde muçulmanos e cristãos têm travado batalhas nas ruas, até o interior da Síria, onde uma repressão particularmente letal desperta temores de um ajuste de contas sectárias, a questão da identidade pode ajudar a determinar se a Primavera Árabe florescerá ou murchará.
Os exemplos mais antigos, geralmente, são de fracassos: o domínio de homens fortes no Egito, na Síria, na Líbia e no Iêmen; o frágil equilíbrio entre comunidades religiosas irrequietas no Líbano e no Iraque; o paternalismo repressivo dos Estados do golfo Pérsico onde os lucros do petróleo são usados para comprar lealdades.
"Acho que as revoluções de certa forma, de uma forma distante, esperam recuperar" esse sentimento de identidade nacional, disse Sadiq al Azm, importante intelectual sírio radicado em Beirute. "Do contrário, os custos seriam a desintegração, o conflito e a guerra civil. E isso ficou muito claro no Iraque."
Segurança e estabilidade eram as justificativas que os autocratas árabes ofereciam para a repressão; agora, a essência dos protestos na Primavera Árabe é que as pessoas podem imaginar uma alternativa. Mas até mesmo os ativistas admitem que a região por enquanto não tem um modelo que consagre a diversidade e a tolerância.
Na Tunísia, um país relativamente homogêneo, com uma população educada, já surgiram divisões entre o litoral, com mentalidade mais laica, e o interior, mais religioso e tradicionalista. Em maio, o político Farhat Rajhi, ex-ministro interino do Interior, sugeriu que as elites litorâneas jamais aceitariam uma vitória eleitoral do partido islâmico Ennahda, cujo apoio se concentra no interior.
"A política esteve nas mãos do povo do litoral desde o começo da Tunísia", afirmou Rajhi. "Se a situação se inverter agora, [essa elite] não está preparada para abrir mão de governar."
No Cairo, a noção de identidade nacional que cresceu durante a revolução -quando centenas de milhares de pessoas de todos os credos celebravam na praça Tahrir gritando "Cabeça erguida, você é egípcio"- agora deu lugar à violência que opõe os cristãos coptas aos muçulmanos. Isso reflete antigas tensões que um Estado autoritário pode ter silenciado ou talvez deixado supurar.
Em um ato público pela unidade nacional, realizado, em maio, na praça Tahrir, os cristãos coptas estavam notavelmente ausentes, e milhares deles se reuniram lá perto para a sua própria manifestação. E, mesmo entre alguns muçulmanos no ato pela unidade, as suspeitas eram evidentes.
"Como muçulmanos, nossos xeques estão sempre nos dizendo para sermos bons com os cristãos, mas não achamos que isso esteja acontecendo do outro lado", disse Ibrahim Sakr, 56, um professor de química para quem os coptas, que perfazem cerca de 10% da população, ainda se consideram os egípcios "originais", já que sua presença é anterior ao islã.
Na Líbia, seguidores do coronel Muammar Gaddafi admitem que, para permanecer no poder, o governo dele aposta nos temores despertados pelas rivalidades entre clãs e pela possibilidade de uma secessão, num país com profundas diferenças regionais.
As autoridades dizem que os grandes clãs estendidos do oeste, os que mais contribuem com soldados para as forças de Gaddafi, nunca aceitariam uma revolução surgida no leste, não importa quais promessas os rebeldes façam a respeito de cidadania universal numa Líbia democrática, cuja capital continuaria sendo a cidade de Trípoli, no oeste.
Os rebeldes, por sua vez, asseguram que a revolução pode forjar uma nova identidade. "Gaddafi vê a Líbia como leste e oeste, norte e sul", disse Jadella Shalwee, um líbio de Tobruk que esteve em maio na praça Tahrir numa espécie de peregrinação. "Mas essa revolta eliminou tudo isso -trata-se de um recomeço" acrescentou, argumentando que os únicos seguidores de Gaddafi são "seus primos e sua família".
"Medo" é a descrição dada a esse fenômeno por Gamal Abdel Gawad, diretor do Centro Ahram de Estudos Políticos e Estratégicos do Cairo -a forma como os autocratas conquistam apoio, pois as pessoas "estão ainda mais assustadas com seus concidadãos".
Talvez em nenhum outro lugar, isso seja mais verdade do que na Síria, lugar em que a revolta generalizada contra as quatro décadas de domínio por uma só família vem acompanhada por um agravamento das tensões entre a maioria muçulmana sunita e as minorias cristãs e de muçulmanos heterodoxos, os alauitas.
Mohsen, um jovem alauita sírio, citou um slogan que ele diz ter escutado em alguns protestos: "Os cristãos para Beirute; os alauitas para o caixão".
"A cada semana que passa", lamentou ele, falando por telefone de Damasco, "piores se tornam os sentimentos sectários".
O exemplo do Iraque, muitas vezes, surge nas conversas em Damasco, assim como a guerra civil no Líbano. A partida dos judeus, que, no passado, formavam uma comunidade na Síria, continua sendo parte da memória coletiva, ilustrando como é tênue a diversidade do país. O governo sírio, que é formalmente laico, mas sempre se baseou na força alauita, denuncia a perspectiva de conflitos sectários. Seus críticos dizem, no entanto, que o regime está inflamando as paixões sectárias. A fórmula sempre citada é, a esta altura, familiar: depois de nós, o dilúvio.
Apesar da onda de repressão e guerra civil, a esperança e o otimismo ainda permeiam a região, mesmo em lugares como a Síria, cenário de uma das mais nocivas ondas de violência. Lá, os moradores costumam aludir a um muro de medo se esfacelando. Em todo o mundo árabe, existe uma renovada sensação de um destino coletivo, que ecoa os dias mais impetuosos do nacionalismo árabe nas décadas de 1950 e 1960 e, talvez, até mesmo os transcenda.
Mas no Líbano, um país que celebra e lamenta a diversidade de suas 18 comunidades religiosas, as diferenças são tão acentuadas que até os times de futebol têm uma filiação sectária.
Em Beirute, devastada por uma guerra travada em torno da identidade do país, e até agora abrigada dos ventos da mudança, ativistas mantêm, há dois meses, um pequeno acampamento de protesto para propor algo diferente, em um apelo que ecoa por todo o mundo árabe.
Os manifestantes apelidaram o local de praça da Mudança, e sua reivindicação é clara: uma cidadania que una ao invés de dividir.
"Nós ainda não somos 'nós'", queixou-se Tony Daoud, um dos ativistas. "O que queremos dizer quando dizemos 'nós'? 'Nós' como o quê? Como uma religião, como seita ou como seres humanos?"

Reportagem de Anthony Shadid, de Beirute, e David D. Kirkpatrick, do Cairo; colaboraram Heba Afify, do Cairo, e um funcionário, em Damasco, do jornal "The New York Times"

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