segunda-feira, 20 de junho de 2011

Champanhe e ópio

Champanhe e ópio

NO DIA EM que Jack Kevorkian morreu, eu pensei no dia em que Oscar Wilde morreu. Confuso? Não esteja, leitor.
Oscar Wilde morreu em 1900 num quarto do Hôtel d'Alsace, em Paris. E ainda hoje, segundo informações recentes do jornal "The Daily Telegraph", é possível repetir a experiência.
Falo de dormir no quarto, não de morrer nele. O hotel mudou apenas de nome: é simplesmente L'Hotel e fica na rue des Beaux-Arts. Experimente.
Mas o "Telegraph", com generosidade britânica, não se limita a oferecer preços para o quarto (R$ 1.000 a noite). Também oferece a lenda que o acompanha.
Em 1897, Wilde deixou a prisão de Reading Gaol depois de cumprir pena por "graves indecências" com rapazes. Cruzou o canal da Mancha. Instalou-se em Paris.
Mas a doença -não a sífilis, avisa o jornal, mas uma intratável infecção auditiva- começou a galopar pelo seu corpo. A morte tornou-se inadiável.
São conhecidos alguns episódios desse fim. Episódios apócrifos, talvez, como o momento em que Wilde contemplou as paredes do quarto e disse: "Eu e o papel de parede estamos a travar um duelo de morte: um de nós tem de ir".
Mas Wilde lembrou-me Kevorkian, ou vice-versa, pela forma como um e outro encaravam o fim.
No caso de Wilde, as dores eram insuportáveis. A medicação já não funcionava. O que fazer?
O escritor teve a resposta: champanhe e ópio. Haverá melhor forma de amaciar a dor antes da cortina descer de vez? A frase "I'm dying beyond my means", tão perfeita e bela quanto intraduzível, também faz parte da lenda.
Eis a minha posição sobre doenças terminais: quando nada mais resulta, champanhe e ópio. Ou, em linguagem moderna, adormecer a dor para que o corpo, a seu tempo, parta para onde só ele sabe.
Matar é um crime. Promover o suicídio, um crime ainda maior.
Mas uma sociedade civilizada deve ser uma sociedade de cuidados paliativos. Uma sociedade de champanhe e ópio.
Jack Kevorkian discordava. E por isso matou, ou forneceu os meios para o suicídio rápido a mais de cem pessoas com doenças terminais ou incuráveis, embora algumas delas não se ajustassem a nenhuma das duas categorias. Jack matava por pedido, como um assassino a soldo.
Levado a julgamento, foi condenado à prisão por homicídio em segundo grau. Nunca se arrependeu. "Se ajudamos as pessoas a nascer", perguntava ele, "não será justo ajudá-las também a morrer?".
A pergunta pode fazer sentido do ponto de vista literário. Não faz qualquer sentido do ponto de vista médico.
O problema da eutanásia ativa e do suicídio assistido -ou seja: o problema de se matar um doente ou então de fornecer os meios para que seja o doente a terminar logo com a sua vida- pode ser discutido de várias formas. Religiosamente. Moralmente. Politicamente.
Mas esquecemo-nos muitas vezes da dimensão médica que lhe está associada. Matar ou fornecer os meios para o suicídio é uma subversão da vocação central da medicina. A medicina serve para curar doenças, não para matar doentes.
Trata-se de um imperativo que define o papel do médico. E, ao definir esse papel, relembra-nos também que os médicos são homens; que os homens são falíveis.
E que colocar nas mãos de um médico a possibilidade de terminar com uma vida pode ser, em muitos casos, um convite à transgressão e ao puro homicídio de pessoas física e emocionalmente vulneráveis.
Esse, aliás, foi o caso de Jack Kevorkian. Quando lemos os obituários sobre o seu trajeto; quando assistimos à soberba das suas entrevistas; quando contemplamos a forma como se apresentava em tribunal para falar das suas proezas macabras, não vemos um médico à nossa frente.
Vemos apenas um homem demasiado apaixonado por seu ego. E que, em nome de uma duvidosa noção da "dignidade da pessoa humana", foi cruzando todos os limites éticos para atribuir a si próprio o papel de um pequeno deus exterminador.
Por vezes, não sei o que perturba mais na vida de Jack Kevorkian: se os crimes cometidos; se o visível orgulho dele por esses crimes.
Em 1900, com a morte próxima, Oscar Wilde preparou-se para ela com champanhe e ópio. Sim, há algo de festivo e digno nesse adeus crepuscular.
Não há nada de festivo ou digno nos açougues tristes e assépticos do celebrado "Doutor Morte".


Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo, de 14 de junho de 2011.

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