Síndrome de Fukushima
EM 12 e 13 de junho, os italianos votarão, num referendo, a favor ou contra o uso da energia nuclear.
Portanto, em Veneza, na semana passada, o assunto corria pelas ruas. Tanto mais que, entre as possíveis sedes de uma usina nuclear, há Chioggia, numa das duas entradas da laguna, a 20 km da Piazza San Marco.
Por um momento, imaginei um futuro em que hordas de turistas deambulariam pelos "campi" da cidade de macacão branco e capacete de astronauta. Não é novidade: também já imaginei como seria fazer esqui náutico nas águas de Angra vestindo o mesmo macacão e o mesmo capacete.
Em Veneza, durante a Bienal, é frequente que casas e comércios vazios hospedem uma obra ou uma exposição. Num desses espaços, bem perto de um estande da campanha antinuclear, visitei "Memory of Books" (memória de livros), de Chiharu Chiota, uma artista japonesa que mora na Alemanha.
A obra apresenta um escritório, com cartas e livros cobertos por uma gigantesca teia de aranha: é como se enxergássemos nossa vida (inclusive os esforços de nosso pensamento) na nostalgia, depois de nosso sumiço da face da terra, pessoal ou coletivo.
Veja em http://migre.me/4JyrK.
Bom, esse era meu estado de espírito quando assisti à primeira palestra de "The State of Things" (o estado das coisas), uma série de conferências que é uma das contribuições da Noruega à Bienal de Arte. Na introdução, Marta Kuzma, diretora da entidade norueguesa que se ocupa de arte contemporânea, falou da "síndrome de Fukushima" como traço específico de nossa época. Logo, tomou a palavra Jacques Rancière, filósofo francês que aprecio e leio; o título da conferência era "In What Time Do We Live?" (em que tempo vivemos?). Rancière falou muito rapidamente e num inglês de sua invenção própria (ao menos foneticamente). Não entendi nada, mas acabei gostando, justamente porque não foi uma palestra, foi uma performance artística, uma demonstração lúdica de que nosso melhor pensamento, diante da complexidade do tempo em que vivemos, não passa de uma agitação sonora no dia depois da queda de Babel.
De repente, a expressão de Marta Kuzma me pareceu adquirir um novo sentido. A síndrome de Fukushima não designa os problemas dos quais padeceríamos por escolher o nuclear; ela designa a condição geral de nossos esforços discursivos e intelectuais (e também de nossa ação, claro) num mundo que apresenta sempre (e no mínimo) a mesma complexidade do acidente da usina nuclear japonesa.
Você se lembra da valsa de notícias e explicações depois do acidente? Teve um reator que vazou, mas está contido; não, parece que tem outro que está pior; por sorte, o resfriamento está funcionando; não, não está; a população não corre perigo; a população está sendo evacuada; não tem vazamento; só tem um pouco de radiações na terra ao redor da central; tem também nos legumes; tem no mar; não foi o terremoto, foi o tsunami; não foi o tsunami, foi o terremoto; é Tchernobil, de novo; não, é mais tipo Goiânia etc.
Certo, houve uma vontade de não alarmar excessivamente as populações, quem sabe negando a gravidade do que estava acontecendo, mas não acredito em nenhum plano explícito de ocultação. A ideia de um complô do silêncio seria, aliás, uma grande consolação, pois, se houvesse complô, haveria um desvendamento possível da verdade dos fatos e das responsabilidades. Quem dera.
De fato, a dificuldade contemporânea (mas que eu não trocaria por nenhuma volta ao passado) não é tanto o silêncio imposto (de fora ou de dentro) quanto o excesso de variáveis. E quanto maior for o número de variáveis que contam na nossa visão da realidade, tanto mais vão será o trabalho de entender e inventar conceitos.
"Conceito", aliás, vem do latim "cum capio", que sugere a ideia de conseguir pegar várias coisas ao mesmo tempo, num punho. Talvez a culpa seja nossa, por querermos e sabermos levar em conta demasiados fatores (ingredientes?) na hora de entender e decidir, mas o fato é que a realidade contemporânea se parece com uma meleca maluca: quando você aperta a mão, ela passa entre os dedos e foge da presa.
É isso que fiquei com vontade de chamar de síndrome de Fukushima, o efeito de uma complexidade (nas coisas e na gente) que pode transformar os discursos teóricos em performances sonoras.
Portanto, em Veneza, na semana passada, o assunto corria pelas ruas. Tanto mais que, entre as possíveis sedes de uma usina nuclear, há Chioggia, numa das duas entradas da laguna, a 20 km da Piazza San Marco.
Por um momento, imaginei um futuro em que hordas de turistas deambulariam pelos "campi" da cidade de macacão branco e capacete de astronauta. Não é novidade: também já imaginei como seria fazer esqui náutico nas águas de Angra vestindo o mesmo macacão e o mesmo capacete.
Em Veneza, durante a Bienal, é frequente que casas e comércios vazios hospedem uma obra ou uma exposição. Num desses espaços, bem perto de um estande da campanha antinuclear, visitei "Memory of Books" (memória de livros), de Chiharu Chiota, uma artista japonesa que mora na Alemanha.
A obra apresenta um escritório, com cartas e livros cobertos por uma gigantesca teia de aranha: é como se enxergássemos nossa vida (inclusive os esforços de nosso pensamento) na nostalgia, depois de nosso sumiço da face da terra, pessoal ou coletivo.
Veja em http://migre.me/4JyrK.
Bom, esse era meu estado de espírito quando assisti à primeira palestra de "The State of Things" (o estado das coisas), uma série de conferências que é uma das contribuições da Noruega à Bienal de Arte. Na introdução, Marta Kuzma, diretora da entidade norueguesa que se ocupa de arte contemporânea, falou da "síndrome de Fukushima" como traço específico de nossa época. Logo, tomou a palavra Jacques Rancière, filósofo francês que aprecio e leio; o título da conferência era "In What Time Do We Live?" (em que tempo vivemos?). Rancière falou muito rapidamente e num inglês de sua invenção própria (ao menos foneticamente). Não entendi nada, mas acabei gostando, justamente porque não foi uma palestra, foi uma performance artística, uma demonstração lúdica de que nosso melhor pensamento, diante da complexidade do tempo em que vivemos, não passa de uma agitação sonora no dia depois da queda de Babel.
De repente, a expressão de Marta Kuzma me pareceu adquirir um novo sentido. A síndrome de Fukushima não designa os problemas dos quais padeceríamos por escolher o nuclear; ela designa a condição geral de nossos esforços discursivos e intelectuais (e também de nossa ação, claro) num mundo que apresenta sempre (e no mínimo) a mesma complexidade do acidente da usina nuclear japonesa.
Você se lembra da valsa de notícias e explicações depois do acidente? Teve um reator que vazou, mas está contido; não, parece que tem outro que está pior; por sorte, o resfriamento está funcionando; não, não está; a população não corre perigo; a população está sendo evacuada; não tem vazamento; só tem um pouco de radiações na terra ao redor da central; tem também nos legumes; tem no mar; não foi o terremoto, foi o tsunami; não foi o tsunami, foi o terremoto; é Tchernobil, de novo; não, é mais tipo Goiânia etc.
Certo, houve uma vontade de não alarmar excessivamente as populações, quem sabe negando a gravidade do que estava acontecendo, mas não acredito em nenhum plano explícito de ocultação. A ideia de um complô do silêncio seria, aliás, uma grande consolação, pois, se houvesse complô, haveria um desvendamento possível da verdade dos fatos e das responsabilidades. Quem dera.
De fato, a dificuldade contemporânea (mas que eu não trocaria por nenhuma volta ao passado) não é tanto o silêncio imposto (de fora ou de dentro) quanto o excesso de variáveis. E quanto maior for o número de variáveis que contam na nossa visão da realidade, tanto mais vão será o trabalho de entender e inventar conceitos.
"Conceito", aliás, vem do latim "cum capio", que sugere a ideia de conseguir pegar várias coisas ao mesmo tempo, num punho. Talvez a culpa seja nossa, por querermos e sabermos levar em conta demasiados fatores (ingredientes?) na hora de entender e decidir, mas o fato é que a realidade contemporânea se parece com uma meleca maluca: quando você aperta a mão, ela passa entre os dedos e foge da presa.
É isso que fiquei com vontade de chamar de síndrome de Fukushima, o efeito de uma complexidade (nas coisas e na gente) que pode transformar os discursos teóricos em performances sonoras.
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