Quando me despedi aqui da lusofonia, semana passada, provoquei uma resposta simpática do historiador, escritor e político português Rui Tavares em sua coluna no jornal Público.
Rui achou que eu estivesse encenando “uma daquelas despedidas lusófonas, de quem sai do bar à espera que os amigos lhe digam ‘não vá, fica aqui com a gente, bebe mais uma’”.
Beber mais uma, bebo com prazer, mesmo porque nenhuma visão autonomista do português brasileiro pode apagar o fato de que ele sempre será... português, pois é.
Se nesse sentido a lusofonia é inescapável, como mito de unidade cultural e bloco geopolítico ela anda bem estropiada, e suspeito que tenha contribuído para agravar um grave problema brasileiro.
O transtorno dismórfico corporal leva pessoas bonitas a se verem como um compêndio de defeitos, com riscos potencialmente sérios à sua saúde. O Brasil sofre de transtorno dismórfico linguístico.
Somos um país que se olha no espelho da língua e odeia o que vê. Não é por outra razão que vive tentando fazer harmonização facial com injeções de anglicismo.
As raízes profundas do problema se alojam em nossa condição original de colônia portuguesa, quando éramos falantes de segunda linha de um idioma imposto de fora.
Imposto, além do mais, com um desprezo pela educação que se destaca na história colonial. Nosso primeiro censo, de 1872, flagrou uma população de dez milhões —dos quais 85% eram analfabetos.
Só em fins daquele século o português se imporia como majoritário entre nós, superando a língua geral brasileira. Hoje mal falamos dessa língua, mas como a falávamos!
Derivada do tupi antigo e com variantes dividas em dois grupos, um no norte e um no sul, foi nossa mãe pela maior parte da história. Está praticamente morta —sua variedade amazônica, o nheengatu, sobrevive à míngua em São Gabriel da Cachoeira (AM).
Vitorioso, o português guarda cicatrizes do tempo em que era só a língua do poder. Quando se dá à margem do ensino, o espalhamento de um idioma por uma população que não o tem como nativo é chamado pelos linguistas de “transmissão irregular”.
Em casos extremos isso leva à crioulização, à criação de uma nova língua, como em Cabo Verde. Em casos moderados, a língua permanece a mesma mas se fende em duas modalidades, a escolar e a popular, que se olham sobre um abismo. É o caso do Brasil.
Alvo de preconceito e marca de exclusão social, o português popular brasileiro nunca se aproximou de uma posição de prestígio institucional. É do jogo.
Contudo, teve tempo de sobra e condições sociais propícias para penetrar em nossa alma pelas frestas, quando o vigia estava distraído.
Hoje a norma culta —sobretudo a oral— dos brasileiros com alto índice de escolaridade é dramaticamente diferente da norma-padrão de nossas gramáticas escolares, retrato congelado e às vezes até cômico da língua que se ensinava em Portugal no século 19.
Como se vê, nosso problema está no espelho. Se a maioria dos portugueses concordaria com a afirmativa de que os brasileiros falam e escrevem “errado”, multidões de brasileiros também pensam assim. A imprensa vive cheia de seus suspiros lamentosos.
Não sabem que língua é aquilo que a gente fala, e que dicionários e gramáticas vêm depois. Eis nosso transtorno dismórfico linguístico e a importância crucial de uma visão autonomista do português brasileiro. Questão de saúde pública. Mas primeiro, claro, a gente tira o Bolsonaro.
Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo.
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