sexta-feira, 21 de maio de 2021

Covid é treva

 

Hoje é o primeiro dia que entro no meu escritório depois de duas semanas. Ainda não recebi alta, mas já respiro sem sentir como se tivesse uma faca enfiada nas costas. Já consigo ir do quarto para a sala sem dar uma paradinha no corredor para recuperar o fôlego.

Covid me pegou de jeito. Não desenvolvi uma forma grave da doença, mas ela derruba de tal maneira que você acaba pensando em morte. Tenho uma tendência à depressão, acho que todos que me leem sabem disso, mas o mais acentuado da minha química cerebral é um forte apreço pela repetição. Caso eu pense “e se eu morrer?” uma vez, isso significa que vou pensar um zilhão de vezes até pular para outra obsessão.

Bem, foram 14 dias trancada num quarto, sem poder chegar perto da minha filha, sem nenhum saco pra ler livros (mas lendo o oxímetro e o termômetro compulsivamente) e pensando o dia inteiro na morte. Na minha, na da minha família, na do Paulo Gustavo, na da criança espancada que só queria um copo de leite, na dos chacinados no Jacarezinho. Tudo isso sem a capa protetora dos escapes, da vida lá fora, do restaurante com amigos, dos projetos de roteiro, dos planos de futuro. Você está em carne viva e finalmente entende (não! você sente!) que morrem milhares por dia. Milhares. Não é mais uma chamada de jornal. Não é roteiro do Bonner no teleprompter. É a humanidade. É você.

Covid é treva. Você precisa desesperadamente do abraço de alguém, mas está há dias catando pratos de comida do chão como se fosse uma presidiária. E você é. Você está presa num país cujo presidente é a própria Covid. O presidente-treva. O presidente que ressurge como essas infinitas variantes novas e mais fatais. Como pode ainda ter gente que o apoia?

Perdi até o senso de humor. Liguei para a padaria e perguntei se eles colocavam linguiça na Dona Deôla. Era o nome da sopa. Acharam que era trote e desligaram na minha cara. Só hoje estou conseguindo rir disso. Com Covid você olha para a comida e pensa que preferia levar uma picada de abelha no olho a se alimentar. Tem que tomar água, mas a água está com gosto da bica do inferno. Tem que se movimentar para não ter trombose, mas apelidei o trajeto que vai da minha cama até o meu chinelo de São Silvestrinha.

Lá pelo sétimo dia da doença, precisei tomar banho sentada no chão. Eu escutava a voz da minha mãe saindo pelo ralo: “Vai pegar uma infecção urinária”. Mas se eu ficasse em pé eu vomitava. Para segurar um copo de suco de laranja um pouco mais cheio, precisei da força dos dois braços (e mesmo assim tremi, porque estava muito pesado). Eu, que tenho dor no corpo há anos (já fui diagnosticada com fibromialgia algumas vezes, mas não sei se acredito nisso), senti como se tivessem aumentado o volume da inflamação até beirar o insuportável.

Minha saturação de oxigênio chegou a 93%, mas rapidamente voltava para 96%. Não era grave. Não mesmo? A tomografia mostrou que meu pulmão estava 25% comprometido. O D-dímero não estava bom, mas não estava péssimo. Um médico quis me internar, outro deu parabéns: “Ah, pegar só ¼ do pulmão é boa notícia!”.

Minha filha passava desenhos por debaixo da porta, sempre nós duas juntas e bem coloridas. De hora em hora, perguntava lá de fora: “Tá boa, mamãe?”. Ela colou band-aids na porta “pra eu sarar”. E vinha cantar pra mim. Deu certo amar tanto essa criança, porque ela também me ama demais. Ontem finalmente a gente se abraçou, e o abraço durou 24 horas. Tive que fazer xixi com ela grudada em mim. Por todo o dia, ela me fez carinho e me beijou e disse que me amava muito. Ela pegava a minha mão e colocava no rosto dela e fechava os olhos e dizia: “Mamãe tá boa já”. Eu não morri.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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