quarta-feira, 26 de maio de 2021

Espetáculo da força é a droga do direitista, que se gaba de não ser bonzinho



Manifestar algum respeito pela vida selvagem e pelas espécies ameaçadas não é difícil. Quem ironiza a preocupação ecológica se arrisca a virar, ele próprio, um perfeito animal.

Mas vale a pena evitar os excessos do romantismo. Viajei uma vez para a Patagônia, e o programa incluía a visita a um rancho de criação de ovelhas.

Nada contra; turista está aí para isso mesmo. O lugar, dos mais desertos que já vi, tinha um problema: pumas atacavam o rebanho. O homem que nos explicava as coisas não se arrependia de matá-los.

“Son malos”, dizia, e seus argumentos me convenceram. O puma destroçava o pescoço de um carneiro e o abandonava, sem se alimentar de sua carne. Fazia o mesmo com o carneiro seguinte. Não era fome, raciocinava o fazendeiro; era puro instinto de matança.

Vai saber. Um grande felino talvez precise de exercício e distração, como um caçador humano. Quem sabe, numa cega programação genética, ele estivesse deixando os carneiros mortos para os filhotes, sem saber que não havia nenhum por perto. Ou, também por instinto, o puma precisasse mostrar seu domínio sobre o território, afastando rivais. Mas talvez fosse maldade mesmo.

Vi uma vez, ao vivo, a cena proverbial de um gato brincando com o ratinho. Era tudo de uma crueldade hipnótica e impressionante. Durou muito tempo —e não tive estômago para assistir ao desfecho.

A pata do gato, tão bonita, prendia o rabo do ratinho. Soltava-o; era visível o desespero da vítima. Quando o rato parecia ter se safado, a calma feroz do felino se impunha novamente. O tapa se abatia em silêncio, sobre a cabecinha agora.

“Vejamos se ele foge desta vez”, pensava o gato. “Estou livre”, iludia-se o ratinho novamente. “Zás! Apanhei-te de novo, amiguinho!” Aquilo não acabava mais. Era jogo. Era luxo. Era sadismo puro.

Pois bem, a ciência acaba de demonstrar que a realidade é provavelmente bem mais complexa. Quem entende de gatos já ouviu falar de uma planta, a Nepeta cataria, que é conhecida em inglês como “catnip”, ou erva de gato em português. É a maconha, o tabaco, o LSD do mundo felino.

Dizem, entretanto, que não vicia. O gato se esfrega nela, lambe as plantas, come-as; fica doidão. Segundo o site Petz.com, ele emite sons de cio; persegue animais imaginários; se estiver estressado, se acalma; se estiver apático, anima-se.

A substância responsável pelo barato se chama nepelactona. Surge então a descoberta, feita por cientistas de uma faculdade de veterinária na Califórnia (onde mais?).

Quando preso entre as patas de um gato, o camundongo produz uma molécula da mesma família da nepelactona, liberando-a pelo suor.

O gato então sente o cheiro e fica momentaneamente chapado. O ratinho ganha tempo suficiente (ou não) para escapar.

Recuperado do brevíssimo transe, o gato estapeia de novo o ratinho, que irá secretar ainda um pouco da droga. O jogo continuará enquanto houver lactonas disponíveis.

Vê-se que o gato não tortura seu inimigo. Está só “dando um tapinha”, como se diz, bem a propósito, na gíria dos consumidores de maconha.

Não é improvável que os pumas da Patagônia tenham relação semelhante com as pobres ovelhas. Fico pensando como é fácil inventar ensinamentos morais a partir do que acontece na natureza.

Todo conservador se entusiasma com a ideia de que a maldade e a destruição fazem parte dos desígnios de são Darwin. Vibra ao pensar que solidariedade e compaixão não passam de um “tênue verniz”, como dizia são Freud, mal e mal recobrindo uma realidade brutal de egoísmo e violência.

Claro que não acho o puma “bonzinho”. Nunca fui de tomar partido entre Tom e Jerry, entre Frajola e Piu-Piu.

Mas acho que bondade e maldade não fazem parte da psicologia animal. Agressão, sim. Só que carinho também.

A guerra pela sobrevivência, o sangue e a violência são a erva de gato do conservador. É preciso que ele acredite numa maldade essencial da espécie humana, e por extensão de toda a natureza, para justificar sua má vontade, a antipatia pelos bons sentimentos e a defesa de seus privilégios.

Por vezes, o direitista nem tem tantos privilégios assim. Fica apenas fascinado pelo poder dos milionários, dos generais, dos chefes, dos brutos.

O espetáculo da pura força é sua maconha: “Haha, não sou bonzinho; sou inteligente demais para ser ingênuo; aqui, da minha biblioteca, vejo claramente a vida como ela é”.

É o machismo do intelectual raquítico. A vida, entretanto, sorri diante de suas proclamações moralizantes e de suas maldições veterotestamentárias. O gato, como os algozes de Cristo, não sabe o que faz.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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