terça-feira, 11 de maio de 2021

Jogo uma cadeira do sexto andar

 

Psicanalista é o cara que aprendeu com Freud, desde “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, que os humanos buscam insistentemente um tirano para chamar de seu. Somado a isso, descobriu em “O mal-estar na civilização" o quinhão de resignação que a civilidade cobra para fazer frente à barbárie ordinária.

Saber disso –e da pulsão de morte que o move– o deixaria mais conformado? Ficaria o psicanalista sentado em sua Bergères, circundado por espessa fumaça de charuto, esperando a inconsciência chegar? Tendo atingido o Nirvana dos insights, reciclaria seu sofrimento em frases de auto-superação?

Se assim o fosse, Freud não teria se debruçado incansavelmente sobre as mazelas sociais de sua época.

Contrariando possíveis expectativas, o que de fato ocorre é que “uma parte de mim almoça e janta, outra parte se espanta”, como disse Ferreira Gullar. E o espanto é tamanho, que a fantasia de correr para a janela –o mais perto da rua que se pode estar hoje– e gritar impropérios, urrar de ódio e arremessar coisas não me larga ao longo do dia. Acordo cedíssimo, caminho pelo bairro antes do amanhecer, atendo meus pacientes, escrevo, cuido de meus relacionamentos afetivos, enquanto contabilizo mortes por Covid e por chacina. A paz de espírito convive com o descalabro, o ultraje e o horror, revelando uma situação enlouquecedora.

Assisto estupefata, mas sem surpresa, a um governo que responde à premência da luta pela vida com a maior chacina já vista no Rio de Janeiro. A cidade maravilhosa é a atual capital da “República das Milícias” (Todavia, 2020), como bem retratou Bruno Paes Manso –obra imprescindível para entendermos os meandros da violência que assola o país. Milícias que agem sob os auspícios de cidadãos que, por ação ou omissão, alimentam os monstros do qual se queixam.

Se a metáfora da tempestade perfeita servir para alguma coisa, lembremos que a pandemia –evento que marca o início simbólico do século 21– é contemporânea do pior governo eleito em nossa trágica história nacional.

O psicanalista Joel Birman, em “Trauma na pandemia do coronavírus" (2021), citando Foucault, nos lembra que o “dispositivo da lepra” foi substituído pelo “dispositivo da peste”, na passagem da Idade Média para o Renascimento. No dispositivo da lepra –de caráter teológico e moral– o doente era banido da cidade por ser portador do Mal. No dispositivo da peste –de caráter científico e higienista– o cidadão é isolado para seu próprio bem, mas não perde a cidadania. No Brasil atual, os dois dispositivos se digladiam e vemos com estupefação a ciência tendo que lutar contra o obscurantismo medieval encampado pelo governo, que atribui a contaminação pelo vírus à pouca fé dos homens e sua cura a remédio ineficazes.

Constato indignada que, se não houve impeachment até o momento, trata-se menos da falta de provas das ações escabrosas do capitão e sua corja, do que da falta de vontade política para levá-lo a cabo. A oposição, cujo cálculo político despreza as mortes e o inenarrável sofrimento da população, aguarda sem constrangimento o momento que melhor lhe aprouver para agir, no caso, as eleições de 2022. As exceções são raras e heróicas.

Vou até a janela e jogo uma cadeira do sexto andar, enquanto grito palavrões contra Bolsonaro, as milícias e todos os que os puseram e os mantém lá.

Não, apenas sento na cadeira e escrevo essas palavras, apostando que a consciência cumpre sua função contra a barbárie. Ainda que não toda, como dizia Lacan, pois igualmente importante é o ato.


Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

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