Por mais que eu me considere civilizado, defensor das artes e dos direitos humanos, sempre tive medo de ser visto, daqui a 200 ou 300 anos, como um bárbaro, capaz de atos inconcebíveis.
Comer carne, por exemplo. Imagino alguém no futuro perguntando como alguém podia ser tão insensível em 2021; o equivalente, para nós, das multidões que se divertiam assistindo a sessões públicas de tortura e execução na Paris de 1700 e tantos.
Há vários motivos para ser vegetariano. Atribui-se parte significativa do aquecimento global à pecuária; diz-se que a mesma quantidade de terra pode alimentar mais pessoas se produzir grãos em vez de bois; mas o argumento principal, para mim, é o da sensibilidade. Se me recuso a ver um matadouro, não tenho nenhuma moral para o churrasco.
Depois de assistir a “Professor Polvo”, o bom documentário de Pippa Ehrlich e James Reed que ganhou o Oscar deste ano, ganhei novos escrúpulos: o bicho, longe de ser ameaçador como parece, é amoroso e inteligente. Discute-se o quanto dói, para um peixe, o anzol na boca. Imagino que muito.
Ah, mas é a lei da vida… Um bicho come o outro, sem se importar a mínima com o sofrimento alheio.
Certo, mas se fosse assim deveríamos continuar trepados em árvores, dando guinchos, renegando qualquer possibilidade de evolução moral e aplaudindo as ações de Bolsonaro. Em todo caso, não vou dar lições de moral. Principalmente porque continuo comendo carne —mesmo sabendo que isso não é certo.
É um tipo de blindagem, que todos nós praticamos. Minha coerência nunca foi total.
Contento-me em saber que, como espécie, caminhamos aos poucos. Só que é chato perceber que a humanidade vai andando, em alguns aspectos, mais depressa do que eu.
Cresce a onda vegetariana na Argentina! Sim, no país da parrillada, o governo federal lançou recentemente a campanha da “segunda-feira sem carne”, sem temer, aparentemente, nenhuma derrota eleitoral.
No País de Gales, a ideia é introduzir insetos na merenda escolar, de modo que as gerações futuras abandonem nossos preconceitos. Bichos cujos nomes não tenho curiosidade de pesquisar são ressecados e moídos. Produzem um molho à bolonhesa que seria capaz de encantar tanto Al Capone quanto João 23.
Disponho-me a aceitar a inovação. Provei uma linguiça vegetariana certa vez. A coisa, pelo que sei, evolui rapidamente, graças a produtos químicos capazes de imitar o gosto da gordura carbonizada, a cor saudável (?) do suíno morto e a textura da fibra muscular antes viva e semovente.
Minha experiência não foi um sucesso. No interior daquele cilindro gorduroso e traiçoeiro, vi algo como fragmentos de ervilha e cubinhos de cenoura afogados numa espécie de purê duro de chuchu.
Como reclamar? Não era para ser uma linguiça vegetariana? E, se fosse melhor que isso, talvez os fregueses devolvessem o prato.
A boa notícia é que o progresso tecnológico não para —e que, em vez do fim das linguiças e das picanhas, pode ser que uma coisa termine antes.
Surge no horizonte uma outra extinção: a extinção dos vegetarianos. Pelo menos, de boa parte deles, se derem certo as últimas experiências no mundo da ciência alimentar.
Tudo começou com o desenvolvimento de tecidos humanos em laboratório, para fins cirúrgicos. Alguém teve a ideia de, em vez de rins e alvéolos pulmonares, produzir lombos e pancetas com a tecnologia.
Afaga-se um porquinho selecionado, aplica-se uma anestesia nele e retira-se com uma seringa especial uma parcela mínima de carne e gordura. Num tanque biorreator, com água quentinha e nutrientes, as células são colocadas numa espécie de treliça, reproduzem-se e voilà!
Em pouco tempo, sem dor e sem morticínio, uma bisteca suína sai fresquíssima do laboratório. É o que promete o Instituto de Engenharia Biomédica de Oxford. As linguiças custarão apenas 25% a mais do que seu equivalente assassino, diz o jornal The Times.
A produção começará logo: serão 12 mil toneladas de carne em 2025 —e 170 mil porcos salvos nesse ano.
Resta saber o que faremos com porcos, bois e galinhas —que continuarão se reproduzindo, sem ninguém para criá-los, alimentá-los e matá-los. Nos pastos, agora florestas renascidas, talvez se tornem selvagens.
Talvez os adotemos como animais domésticos; talvez os deixemos aqui na Terra —quando partirmos, com biorreatores e células suínas, para um planeta novo em folha.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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