Sim, caro leitor, a minha Covid ainda vai render mais uma coluna. Quando, semanas atrás, precisei ir ao laboratório para colher sangue e fazer uma tomografia, achei desprezível pôr qualquer pessoa em risco (motorista de aplicativo, taxista, marido, amigo) e, mesmo numa vibe “talvez eu desmaie se me esforçar pra dar seta pra direita”, fui dirigindo.
Procurei vaga na rua, mas eu ia acabar perdendo o horário do exame (e mais do que uma quadra eu sinceramente não aguentava andar). Quando cheguei ao estacionamento do prédio, baixei o vidro meio centímetro e pedi, usando duas máscaras, por um espaço em que eu pudesse parar o carro sem contaminar as pessoas.
Notei que provavelmente ninguém com Covid, ou com suspeita do vírus, teve essa preocupação antes.
Não existia essa possibilidade, e o manobrista insistiu: “Tudo bem, senhora, eu não tenho medo”. Não deixei, pensei em sair e tentar mais uma vez estacionar na rua. Me mandaram então parar na vaga de um médico que estava de férias. E lá eu fiquei por 40 minutos, esperando um segurança compreender (a dois metros de mim) que sim, eu estava no lugar errado e sem crachá, mas não era rebeldia, era uma tentativa “meio perua, meio de esquerda” de pensar nos outros.
O homem passou o rádio 67 vezes até que ficou decidido que eu só poderia circular com a minha doença de forma segura se ele ficasse bem perto de mim dentro de um elevador apertado. Me recusei e comecei a subir andares de escada, mesmo com meu pulmão me avisando que ia dar ruim. O segurança foi atrás “caso eu passasse mal” e repetia: “Eu não tenho medo”.
Daí você pode me zoar, com razão: “Ah, tadinha da branquela com plano de saúde tentando parar o carrinho dela no laboratório, né?”. Mas na verdade, a galhofa real continuará sendo com os funcionários desse prédio sem nenhuma proteção contra a Covid da branquela com plano de saúde.
Finalmente na recepção —do “melhor laboratório do país”— eu avisei sobre a minha doença e esperei que me isolassem. A moça sorriu, doutrinada para acreditar que loira é bem-vinda mesmo trazendo a praga: “Quer uma água?”. Me encaminharam para um ambiente com famílias, uma grávida e um senhor de uns 50 anos que me olhava com ódio a cada vez que eu tossia. Me levantei e falei alto: “É Covid, ninguém vai me isolar?”. Em dois segundos eu estava finalmente sendo tratada como merecia: um perigo para sociedade. O que faltava para isso ter acontecido antes? Eu deveria ter ido vestida de Jason do “Sexta-Feira 13”? Com a máscara do “Pânico”? Com uma camiseta com a estampa “Desculpem o transtorno, estamos em manutenção” e o desenho de um pulmão?
Conversei com a enfermeira que coletou meu sangue. Expliquei-lhe que deveria estar mais bem protegida para chegar perto de mim. Mãe de dois adolescentes, ela me contou que quase todo mundo ali pegou Covid, alguns ficaram muito mal e “uns dois” morreram. O técnico que me acompanhou na tomografia disse que procurava não pensar nisso. Lembrei da Maria, que trabalha na minha casa, insistindo no meu celular há dias: “Deixa eu ir, eu não tenho medo”.
Pois eu estava apavorada. A enfermeira fez um carinho no meu braço: “Vai ficar tudo bem”. As pessoas que estão sendo dizimadas, sem plano de saúde de branquela tentando estacionar em laboratório caro, são ensinadas que não precisam ser protegidas e não precisam ter medo. Eu fui ensinada que preciso ser protegida e preciso ter medo. E assim estabelecemos uma relação desigual até durante o fim do mundo.
Eu tento pensar nisso todos os dias enquanto sinto vergonha e inveja dos meus amigos que estão se vacinando nos EUA. E sou ridícula, mas melhora quando compro plantas e almofadas.
Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário