Preciso escrever uma crônica. Lá fora, o mundo parece se esfarelar feito empada velha. Não confio em quem diz que não procrastina. Isso só agrava a culpa dos procrastinadores assumidos, fazendo com que procrastinem ainda mais.
Já dizia o meme: não é procrastinação se você está atravessando uma pandemia. Ouso acrescentar uma rabiola: atravessando uma pandemia sob os desmandos da pior liderança mundial no assunto, sem perspectiva de melhora, de vacina e de impeachment —pelo menos a curto prazo.
Ou seja, como brasileira não vacinada, não me faltam justificativas para procrastinar à vontade. Mas minhas tarefas não vão desaparecer magicamente como um ministro da Saúde do governo Bolsonaro.
Então vamos à crônica. Mas, antes, que tal abrir o site Quando Serei Vacinado? só para sentir uma baforada de esperança no cangote? Preencho meus dados e encaro o resultado. Nove meses. Eu não tenho criatividade suficiente para procrastinar por tanto tempo.
Já busquei por réplicas do macacão azul do Senna no Ebay; estudei o regulamento de petanca, um jogo francês semelhante à bocha; li uma reportagem na revista Caras sobre a vasectomia do Luciano Szafir e ensaboei um pacote de macarrão mesmo sabendo que a contaminação de Covid-19 por superfícies é raríssima.
Minha mão ganha vida própria e alcança o celular. Arreganha a janela da vizinha fofoqueira, também conhecida como Instagram. O ralo de tempo com o poder de sucção mais efetivo que já vi. Aqui, me sinto em casa. Ninguém é produtivo.
Observo, paralisada, meu prazo se aproximar como um círculo de fogo. O que nos leva a um terreno bastante visitado pelos procrastinadores, a dúvida “será estafa ou Covid-19?”. Para driblar esse dilema, agendo um PCR para o dia seguinte.
Ah, o dia seguinte.
O céu e o inferno dos procrastinadores. A solução que se transforma em problema, no dia seguinte, e novamente se apresenta como solução, e assim por diante, em um ciclo vicioso e aflitivo.
Preciso concluir essa crônica. Não quero romantizar a procrastinação, seus efeitos podem ser devastadores. Se o presidente parasse de perder tempo com ações contraproducentes, centenas de milhares de vidas seriam poupadas. Sua incompetência para o trabalho é um assunto que não podemos deixar para amanhã.
Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo.
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