Corria o ano de 2012 e eu chutava propaganda política. Gostava de destroçar aqueles cavaletes com o pé e postar nas redes. Pensava estar fazendo humor político.
Estava na Gávea, na praça Santos Dumont, quando encontro o rosto de algum botocado sorridente, com pinta de miliciano, no meio da calçada. Chuto com tanta raiva que atravesso seu sorriso com a sola do meu pé. Tento tirar o cavalete preso na minha perna quando irrompe um sujeito enorme, com relojão de ouro e cabelo acaju.
Logo percebo que o capanga estava ali pra vigiar a propaganda que eu tinha destroçado. Tento argumentar, obviamente sem sucesso, que o anúncio era irregular.
Ele me empurra e eu caio no meio-fio, por cima do cavalete que continuava preso na minha perna. Já não dava nem pra fugir. “Chama a polícia, então, porra!”, ele grita, enquanto me chuta, até que é surpreendido por uma mão em seu ombro.
“Calma, amigo, esse menino é dodói.” A voz soa familiar. É Paulo Gustavo. “Ele tá comigo.” Ao seu lado, Ingrid Guimarães se junta ao coro. “Ele não bate bem, não.”
O sujeito sai de ré, não sem antes me ameaçar de morte se eu voltasse ali. Os amigos me ajudam a me livrar do cavalete. Agradeço a intervenção. “E eu menti?”, diz o Paulo. “Você é dodói, garoto.”
Acho que não foi a única vez em que ele salvou minha vida. Toda vez que me deparo com impulso vândalo, uma indignação difusa, penso nele. Paulo tinha horror ao ativismo vazio.
“Basta! Chega!”, grita sua personagem loira revoltada. “Eu to indignada com o Brasil! Basta! Chega!” Ela repete em looping, e eu penso nele toda vez que tenho vontade de gritar basta. Infelizmente acontece muito. Mas nunca mais chutei um cavalete. O ódio continua, mas tento canalizar de formas mais eficientes.
“Lenny Bruce está morto, mas seu fantasma vive por aí”, canta Bob Dylan, em homenagem ao comediante maldito que morreu aos 40 anos de idade. Nada une Paulo Gustavo a Lenny Bruce, a não ser a profissão e a morte precoce.
Paulo teve a carreira mais bem-sucedida que um comediante pode ter. Ao contrário do Lenny (e de mim), nunca ofendeu ninguém, não usava drogas, mas tem uma parte da música que, hoje, não consigo ouvir sem chorar. “Talvez ele tivesse alguns problemas”, canta Bob Dylan, “mas ele levava as pessoas a lugares altos e iluminava suas camas”.
Humor também pode ser isso: uma luzinha na mesa de cabeceira. Sendo ele mesmo, Paulo fez o brasileiro mais feliz de ser ele mesmo. Paulo fez o brasileiro mais feliz.
Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário