Preciso escrever uma crônica. Toda semana agora é isso. Veja bem, o problema não é a demanda. O problema é o Brasil. Sinto que a inspiração, farta desse pesadelo, me abandonou no acostamento e saiu cantando pneu.
Não sei exatamente onde as boas ideias foram parar, mas estou decidida a reencontrá-las.
Por isso convido você, querido leitor, a um passeio dentro da cabeça de uma cidadã brasileira desprovida de anticorpos contra a Covid-19 no ano de 2021.
Funciona como o quadro Porta dos Desesperados, apresentado por Sérgio Mallandro em seu programa de TV nos anos de 1990. Você escolhe uma porta e abre, sem saber o que irá encontrar.
A primeira porta chamaremos de Festival de Gatilhos. Sou atropelada por um bloco de Carnaval em um dia de chuva, sinto o cheiro de milho verde em uma festa junina de bairro, uma bolinha de frescobol me atinge em cheio na praia do Leme. Me abraçam até minhas costelas estalarem, ai, alguém pisa no meu pé e eu peço desculpas.
A princípio, tudo parece muito agradável, mas viver de lembranças tem um quê de tortura.
Eu não sabia o que era tortura até adentrar a segunda porta, que nos leva à Masmorra do Bolsonarismo.
Aqui, a palavra de ordem —se é que podemos falar em ordem— é morte. Quase meio milhão de mortos.
A maior chacina da história do Rio de Janeiro. Um decreto que facilita o acesso da população às armas.
A CPI da Covid jogando sal na ferida aberta, recapitulando cada passo em direção ao abismo de um chefe de Estado que arrastou consigo uma nação inteira. Chega.
Terceira porta, que seja. Museu de Paranoias. Um vasto acervo de neuroses acumulado ao longo de um ano inteiro trancada, sozinha, em um apartamento. A maioria delas, uma variação do mesmo tema.
Temperei mal a comida ou estou com Covid? Me apaixonei pela pessoa errada ou estou com Covid? Bloqueio criativo ou Covid? Ou os dois?
A quarta porta, por sua vez, é um caminho sem volta para a Suruba do Eu Sozinho. Um lugar bem visitado por quem atravessa essa pandemia em estado de solteirice aguda. As fantasias mais improváveis com aquele vizinho que lembra o Tiago Leifert e outros cenários impublicáveis, dignos de um delírio febril de Pier Paolo Pasolini.
Não sei o que está atrás da quinta porta, mas suspeito que não será minha inspiração. Prometo a você, querido leitor, que seguirei atrás dela. Semana que vem tem mais.
Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo.
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