Conhecia alguns filmes baseados em histórias de Patricia Highsmith, como o excelente “Pacto Sinistro”, de Hitchcock, mas nunca tinha lido seus livros e aproveitei o centenário de seu nascimento para fazer uma espécie de “intensivão” nessa verdadeira escola de perversidade psicológica.
Sou mais a linha dos detetives clássicos, encarregados de resolver um crime como uma charada ou problema de xadrez.
Há quem diga que as histórias de Agatha Christie ou Dorothy Sayers são profundamente conservadoras: acontece um crime (a perturbação da ordem) e, uma vez encontrado o criminoso, o status quo se restabelece.
A interpretação é um bocado mecânica, a meu ver. O leitor desse tipo de romances não se importa muito em ver o assassino punido; há um famoso caso em que Poirot decide esconder da polícia a solução do mistério. A pessoa assassinada, concluía o detetive, merecera o seu destino.
Natural que seja assim. Para que existam cinco ou dez suspeitos de um assassinato, cada qual com seus motivos, é preciso que a vítima seja altamente detestável. Nenhum leitor lamenta o crime, portanto, nem se sente apaziguado quando o criminoso vai para a cadeia.
A única “desordem” que os policiais clássicos tratam de consertar é de ordem intelectual. Havia quatro penas de pavão na cena do crime; o assassinado usava meias de cores diferentes; o anel roubado tinha sido engolido por seu cachorrinho de estimação. O que aconteceu?
É como uma colagem surrealista, em que o detetive se encarrega de restaurar, não a ordem, mas o sentido da cena.
Os livros de Patricia Highsmith não têm nada disso. Nos que eu li, se aparece um detetive, ele é incapaz de atinar com nada (veja-se “O Talentoso Ripley”, por exemplo).
E, se nas histórias clássicas o criminoso é movido pelo autointeresse (quer dinheiro ou vingança), no mundo de Highsmith o que prevalece é o mal sem maiores explicações.
Em “Resgate de um Cão”, por exemplo, tudo poderia reduzir-se a um golpezinho desimportante. O cachorro de um rico casal nova-iorquino é sequestrado e, por US$ 1.000, seria devolvido. Seria pouco para produzir um romance, mas Patricia Highsmith mantém o interesse (e a repugnância) do leitor construindo um personagem doente, obcecado em destruir a vida do policial que o investiga.
O policial, por sua vez, não é menos obcecado; por alguma razão psicanalítica, ele quer se aproximar ao máximo do casal rico, esquecendo os próprios pais nesse processo.
O famoso Ripley, no primeiro romance da série, vive o mesmo complexo, como se quisesse ser adotado pelos pais de Dickie Greenleaf, seu amigo milionário.
Patricia Plangman adotou o sobrenome de seu padrasto, Stanley Highsmith. Conta que desde pequena alimentava a fantasia de matar o padrasto; quando adulta, o seu comportamento tornou-se famosamente agressivo, com bebedeiras tremendas e uma longa sequência de relacionamentos abusivos.
Ela dizia ser uma lésbica profundamente misógina —mas não odiava apenas as mulheres; a humanidade toda, segundo ela, era composta majoritariamente de débeis mentais.
Preferia criar lesmas e as guardava na bolsa, para apresentá-las aos incautos.Também criador de lesmas é o pacato (?) marido de “Em Águas Profundas” —história quase dostoievskiana de crueldade conjugal.
O escritor russo talvez esteja ainda presente em “O Grito da Coruja”, romance em que, a troco de nada, o protagonista começa a espionar uma jovem que mora sozinha em casa. O namorado da moça, por sua vez, desenvolve a monomania inversa, e passa a perseguir o herói da história.
Há sempre a obsessão de um homem por outro. Em vez de se liberar num relacionamento homossexual, tudo se traduz em pulsão destrutiva.
A psicanálise desse esquema narrativo pode ser banal hoje em dia, mas são histórias escritas nas décadas de 1950 e 1960, no ambiente falsamente normal da classe média americana.
Se a sexualidade se reprime, o assassinato se torna, nesses livros, absolutamente inevitável. O personagem principal não tem outra saída senão matar quem o persegue. As circunstâncias dos livros são muitas vezes implausíveis, mas o crime é cometido com fatalidade de relojoaria.
Highsmith não se preocupa com a resolução de enigmas, com a restauração da ordem, ou com a punição do criminoso; o problema, aqui, é de doença —talvez sem cura.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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