Na morte de Alan Parker, pressenti algum esnobismo no ar. O diretor não merece lugar no panteão do cinema?
Talvez não. Mas é preciso fazer uma distinção entre os grandes autores que deixaram obra consistente e aqueles, como Parker, que deixaram um grande filme capaz de justificar toda uma carreira.
Esse filme, esse verdadeiro milagre, aconteceu em 1988. O título é “Mississippi em Chamas”.
Revi a obra depois da notícia da morte. Primeira conclusão: hoje, o filme seria impensável. O tema é atual, atualíssimo, talvez mais atual do que nunca —o racismo, sempre esse pecado original da república americana.
Mas os personagens centrais são dois brancos, dois policiais, que se revelam os heróis da história na luta contra a Ku Klux Klan.
Pior ainda: os dois são agentes do FBI. Em 1964, ano em que decorre a história do filme, o FBI era liderado por J. Edgar Hoover, um consumado racista e um inimigo declarado de Martin Luther King.
Como aceitar que a instituição liderada por Hoover tenha sido a guardiã da justiça naquele sul profundo e imundo onde a segregação fazia as suas vítimas?
E, no entanto, qualquer pessoa interessada em entender a natureza do racismo não pode esquecer esse filme.
Para ser mais preciso, não pode esquecer os dois policiais brancos que viajam até o Mississippi para descobrir o destino de três ativistas dos direitos civis que ali desapareceram (“desapareceram” é eufemismo; sabemos desde o início que foram mortos).
De um lado, temos o jovem Alan Ward (o ainda imberbe Willem Dafoe), um idealista de coração puro que deseja seguir os “procedimentos habituais”.
Do outro lado, uma velha raposa: Rupert Anderson (magistral Gene Hackman), nascido e criado no sul, e que prefere seguir métodos menos ortodoxos.
Ele conta piadas (de mau gosto); ele aconselha Alan a não espantar demasiado os cavalos na investigação; ele nem sequer tem grande apreço pelos ativistas dos direitos civis que arriscam a vida para registrar eleitores negros.
“Há pessoas que ainda lutam por uma causa”, diz Alan, exasperado com o cinismo do parceiro. “E há pessoas que matam por uma”, responde Rupert, impassível.
Alan segue os códigos; Rupert segue a experiência. E a experiência lhe diz duas coisas, aparentemente contraditórias.
Para começar, o racismo não é um mistério metafísico. Ele nasce do ressentimento. Um dos momentos mais brutais do filme acontece quando Rupert recorda o seu próprio pai, que envenenou o jumento do vizinho por não tolerar que um negro pudesse ter semelhante exibição de prosperidade.
O jovem Alan, confrontado com a história, dispara ao lado: “Isso serve como desculpa para os atos dele?”.
Não, não serve, responde Rupert. Porque o ponto é outro: mostrar como o ódio racial nasce sempre de um sentimento de insegurança e até de inferioridade. O pai era “um velho cheio de ódio” que, incapaz de lidar com o seu próprio fracasso, procurava no outro, no diferente, no vizinho negro, o bode expiatório da sua própria ruína.
O racismo é a filosofia dos perdedores, dos fracos, dos fracassados. Mas Rupert também sabe que, por vezes, mesmo o mais fétido dos pântanos pode produzir uma centelha de consciência.
Essa consciência está presente em Mrs. Pell (Frances McDormand, em início de carreira). Ela também foi educada no ódio e, como a própria confessa, até casou com ele.
Mas esse veneno se torna irrespirável, sobretudo quando conhece Rupert, um produto do sul tal como ela. Rupert é a evidência de que, apesar das origens, é possível ter uma vida melhor, uma vida decente. Como afirmara Alan, o teórico por excelência, o crime só seria desvendado “por dentro”, quando as peças daquele sistema iníquo começassem a cair uma por uma.
O que Alan desconhecia é que o início dessa queda não seria provocado pelos “procedimentos habituais”, mas pela empatia que Rupert estabelece com aquela mulher. É o princípio do fim.
“Mississippi em Chamas” é um documento visual poderoso sobre a violência dos supremacistas brancos sobre a população negra. Mas é também um retrato intemporal sobre a miséria moral e espiritual dos supremacistas brancos.
Sim, quando eles discursam contra os negros, contra os judeus, contra os latinos, as palavras soam vigorosas.
Alan Parker teve o mérito de nos mostrar o que existe por detrás dessa retórica: um mundo de fraqueza e barbárie que só orgulha quem não tem mais nada de que se orgulhar.
Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo.
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