terça-feira, 4 de agosto de 2020

Loucura é outra palavra para natureza humana

Quando estive o ano passado em Lisboa, a minha amiga Tatiana Salem Levy me passou uma listinha de lugares necessários e nela estava a editora e livraria Cotovia.

Ela me contou que um dos fundadores, o editor André Jorge (já falecido), foi um grande incentivador da literatura brasileira, lançando o primeiro romance de Tatiana, “A Chave de Casa” (que recomendo fortemente e que me fez, encantada, ir atrás da autora e lhe pedir amizade eterna).

O catálogo é realmente fascinante, com uma vasta oferta “dramática” de poesia e teatro e muitos nomes da nova literatura portuguesa.

Foi lá que eu encontrei, na seção de psicanálise, essa maravilha chamada “Louco Pra Não Dar Em Louco”. A obra, na versão original inglesa, tem um nome ainda mais intrigante “Gone Sane”. Aqui no Brasil você encontra o livro pela ótima editora Zahar e com o título “Louco Para Ser Normal”.

Mesmo sem nunca ter lido nada do psicanalista Adam Phillips, lembrava de já ter ouvido e visto seu nome, por indicações de amigos winnicottianos e nas traduções da obra do Freud que saíram pela editora Penguin.

Na parte um, “Notas Para a Definição de Sanidade”, Adam começa levantando a hipótese de que os sãos não existem e todos nós, mentirosos, inventamos o termo sanidade.

“Sabemos onde encontrar os loucos e com quem falar acerca deles...[...] mas onde podemos ir para encontrar os sãos? Em que prédio vivem? O que vestem? Como é que eles são e como poderemos reconhece-los? Têm características identificáveis?... [...] O fato é que eles não recebem nosso interesse, tampouco são notícia nos jornais”.

E conclui que se os loucos carecem de sentido e acabam por viver isolados, os ditos sãos soam desinteressantes e pouco complexos.

O autor cita bastante o psiquiatra britânico Ronald Laing, um dos expoentes da antipsiquiatria na década de 1960, conhecido por buscar lógica na irracionalidade e por incentivar seus pacientes a buscarem o caminho da expressão e da excentricidade, e não o da adaptação. Phillips arremata: “Aquilo a que se estava a chamar loucura era, para os antipsiquiatras —e, de fato, para muitos artistas contemporâneos— simplesmente o retorno de todas as complexidades, de todas as emergências e nuances”.

Adam é um grande estudioso de Winnicott, tendo publicado vários livros sobre o psicanalista e pediatra. Ao citá-lo, lembra de uma frase célebre: “Através da expressão artística, podemos esperar manter-nos em contato com os nossos eus primitivos [...] somos realmente pobres se formos apenas sãos.” E complementa que, para Winnicott, o mais importante não é o que fazer para criar filhos sãos mas, sim, como conservar a loucura sã dentro de mentes jovens.

No capítulo “Sexo São”, Phillips sugere que, ao falarmos tanto e abertamente sobre sexualidade, estamos reprimindo nossa vida sexual das mais variadas formas “[...] como se agora usássemos o sexo para nos desvencilharmos da sexualidade. Como se o sexo não fosse uma coisa de que realmente gostamos, mas algo do qual queremos nos livrar”. Fala da importância do desejo sexual na juventude: “um caminho para fora da família”. E levanta a bandeirinha da normalidade para algumas perversões, escrevendo que “toda a sexualidade adulta tem em si elementos perversos porque toda a infância é traumática...”.

Para dar um nó definitivo na cabeça do leitor, Phillips equaciona essa frase espetacular aqui: “Mas a sanidade tem a ver com fazer escolhas, e sexo tem a ver com a impossibilidade de fazer escolhas. Resolver isso seria o bastante para enlouquecer qualquer um”.

Entre as leituras psicanalíticas que fiz neste ano, foi das melhores descobertas.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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