terça-feira, 25 de agosto de 2020

Nem o conto de fadas mais sanguinolento prepara as meninas para a vida real

 Era o período pré-“Frozen”, quando os filmes de princesas da Disney ainda eram dignos do selo Damares de Storytelling. Eu tinha seis anos de idade e fui presenteada com um livro da Cinderela. Estranhei aquela princesa com cabelos castanhos ondulados e revoltos que se emaranhavam pela capa, e em nada me

lembravam o coque loiro sem um fio fora do lugar da Cinderela do desenho animado.

Não reparei no subtítulo —e acredito que minha mãe tampouco—que dizia “conto original dos irmãos Grimm”.

Li a história brincando de jogo dos sete erros, apontando as diferenças entre a versão soft da Disney, que já conhecia. No conto original, o pai da Cinderela não morre, apenas se casa novamente e é testemunha omissa dos maus-tratos sofridos por sua filha. Pelo simples fato de não fazer nada, o morto-vivo se destacava como um vilão à altura de sua nova mulher.

Cinderela chorava no túmulo de sua mãe quando uma pomba prometeu cumprir todos os seus desejos. Eu ainda comprava narrativas com animais falantes, mas onde já se viu um conto de fadas sem fadas? Um conto de pombas?

Pois é a pomba que descola o look para Cinderela lacrar no baile, o que nos leva ao quiprocó do sapatinho e dá início à carnificina. O príncipe, que devia estar embriagado o suficiente para não se lembrar da fisionomia de seu grande amor, se lança em uma saga envolvendo todas as donzelas do reino.

A irmã postiça de Cinderela se tranca e volta com o par de sapatos, que serviu perfeitamente. A caminho do palácio, a pomba denuncia o sangue que escorre dos pés dela. A personagem mutilou o próprio dedão para caber no sapatinho 36.

A madrasta pede à segunda filha: “Corta fora teu calcanhar, quando fores rainha não precisarás andar a pé”. Quem precisa de um calcanhar quando se tem um bom marido, não é mesmo? Elas só não contavam com a pomba xis nove, que mais uma vez aponta o rastro de sangue na trilha da floresta.

O final da história é quase o mesmo. Cinderela se casa com toda a pompa. As irmãs aproveitadoras participam da cerimônia e as pombinhas justiceiras arrancam os olhos delas.

Fechei o livro em absoluto horror, mas não foi ali que perdi minha inocência. Algum tempo depois, com dez anos de idade, fui beijada e tocada por um velho amigo da família. Nem o conto de fadas mais sanguinolento prepara as meninas para a vida real.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário