terça-feira, 4 de agosto de 2020

Como policiais e ex-soldados de extrema direita na Alemanha se planejaram para o 'Dia X'

O plano parecia assustadoramente concreto. O grupo prenderia inimigos políticos e defensores de migrantes e refugiados, os colocaria em caminhões e os levaria a um local secreto. E então os mataria.

Um membro da organização já havia comprado 30 bolsas mortuárias. Mais bolsas estavam em uma lista de artigos a comprar, disseram investigadores, além de cal, usada para decompor materiais orgânicos.

À primeira vista, os membros que debatiam o plano pareciam ser respeitáveis. Um deles era advogado e político local, mas nutria ódio especial por imigrantes. Dois eram reservistas ativos do Exército.

Outros dois eram policiais, sendo um deles Marko Gross, atirador de elite da polícia, ex-paraquedista e líder extraoficial da entidade.

O grupo foi formado a partir de uma rede nacional de discussões para militares e outras pessoas de pensamento de extrema direita, criada por um membro das forças especiais de elite da Alemanha, as KSK.

Ao longo do tempo, sob a direção de Gross, os membros foram formando um grupo paralelo próprio. Entre seus integrantes havia um médico, um engenheiro, um decorador, o dono de uma academia de ginástica e até um pescador local. Eles se autodenominaram Nordkreuz, ou Cruz do Norte.

“Formávamos um verdadeiro vilarejo”, recordou Gross, um dos vários membros do Nordkreuz que, em diversas entrevistas ao New York Times, relatou como o grupo foi formado e começou a traçar planos.

Eles negam que tenham conspirado para matar alguém. Mas investigadores consideraram —e o relato que um de seus integrantes fez à polícia indicou— que o planejamento enveredara por um rumo mais sinistro.

A Alemanha começou tardiamente a tentar enfrentar redes de extrema direita que as autoridades agora dizem ser muito mais extensas do que elas jamais haviam entendido.

A penetração da extrema direita nas Forças Armadas é especialmente alarmante em um país que se esforçou tanto para expurgar seu passado nazista.

Mas o caso da Nordkreuz, que veio à tona há mais de três anos e apenas recentemente foi a julgamento, mostra que o problema não é novo e não se limita às KSK, nem sequer às Forças Armadas.

Autoridades e parlamentares reconhecem que, durante os anos em que subestimaram a gravidade do problema ou relutaram em enfrentá-lo plenamente, o extremismo de direita penetrou múltiplos setores da sociedade alemã. Agora eles estão tendo dificuldade em erradicá-lo.

Uma motivação central dos extremistas parece ser tão improvável e absurda que por muito tempo investigadores e autoridades não a levaram a sério, ao mesmo tempo em que ela ganhava espaço nos círculos de extrema direita.

Agrupamentos neonazistas e outros extremistas a descrevem como o "Dia X" —um momento mítico em que, segundo teorizam, a ordem social da Alemanha vai desabar. Para eles, quando esse dia chegar, serão precisos extremistas de direita plenamente engajados para salvar a si mesmos e resgatar a nação.

Os “preppers” (pessoas que se preparam para um futuro e hipotético colapso da sociedade) para o "Dia X" vêm ganhando a adesão de pessoas sérias, dotadas de ambições e habilidades.

As autoridades alemãs estão cada vez mais enxergando esse cenário como pretexto de conspiradores de extrema direita para praticar terrorismo doméstico ou até tentarem uma tomada do governo.

“Meu medo é que só tenhamos visto a ponta do iceberg”, comentou Dirk Friedriszik, deputado no estado de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental, onde a Nordkreuz foi fundada.

“Não são apenas as KSK. A preocupação maior é que essas células estão em todo lugar. No Exército, na polícia, nas unidades de reservistas.”

A Nordkreuz era um desses grupos que faziam planos detalhados para o "Dia X". O serviço de inteligência doméstica alemão recebeu uma denúncia anônima no final de 2016, e, em meados de 2017, promotores começaram a investigar a entidade.

Mas levou anos para a rede, ou uma pequena parte dela, ser levada a julgamento.

Mesmo agora, apenas um integrante do grupo, Marko Gross, enfrenta acusações criminais —por posse ilegal de armas de fogo, não por participação em uma conspiração maior.

No final do ano passado, Gross recebeu uma sentença de 21 meses de prisão, cujo cumprimento foi suspenso. O veredito foi tão brando que neste ano promotores do Estado recorreram, empurrando o processo para outra rodada de deliberações extensas.

Alguns membros da Nordkreuz eram tão sérios que compilaram uma lista de inimigos políticos. Heiko Böhringer, político local na região onde a Nordkreuz tem sua base, recebeu ameaças de morte.

“Antigamente eu enxergava os 'preppers' como malucos inofensivos, pessoas que viram filmes de horror demais”, comentou Böhringer. “Hoje já não penso assim.”

CRUZ DO NORTE

O estande de tiro em Güstrow, pequena cidade rural no nordeste da Alemanha, fica no final de uma longa estradinha de terra e tem sua entrada protegida por um portão pesado. A área é cercada por arame farpado. Uma bandeira da Alemanha flutua ao vento.

O policial Marko Gross era frequentador regular do local. Ele tinha sido paraquedista e oficial de reconhecimento de longa distância no Exército alemão, até seu batalhão ser absorvido pelas forças especiais de elite alemãs, as KSK.

Outra presença frequente era Frank Thiel, campeão de eventos de tiro com armas de mão e instrutor de tiro tático em unidades policiais e militares de todo o país.

No final de 2015, enquanto comandava um workshop de tiro para a KSK no sul da Alemanha, Thiel tomou conhecimento de uma rede de discussões encriptada, de abrangência nacional, para a partilha de informações privilegiadas sobre a situação de segurança na Alemanha e como se preparar para uma crise.

A rede era dirigida por um militar chamado André Schmitt. Mas todos o conheciam como Hannibal.

Em pouco tempo, 30 pessoas, muitas delas frequentadoras regulares do estande de tiro, ingressaram na seção norte da rede de Schmitt, passando a acompanhar suas atualizações com enorme interesse.

Não demorou para Gross decidir criar um grupo paralelo para que seus membros pudessem se comunicar e encontrar localmente.

Em janeiro de 2016, essa rede se converteu na Nordkreuz. Com o tempo, o grupo se converteu em uma irmandade coesa, cujos membros compartilhavam a ambição que passaria a dominar sua vida: preparar-se para o "Dia X".

Eles começaram a armazenar estoques suficientes para sobreviver por cem dias, incluindo alimentos, gasolina, produtos de higiene, walkie-talkies, remédios e munições. Gross arrecadou 600 euros (R$ 3.750) de cada membro do grupo para pagar por tudo. Ele armazenou mais de 55 mil cartuchos de munição.

O grupo identificou uma “casa segura” onde os membros se instalariam com suas famílias no "Dia X": uma antiga colônia de férias comunista no meio de um bosque.

“O cenário que prevíamos era que algo de ruim ia acontecer”, disse Gross. “Nós nos perguntamos: para o que queremos nos preparar? E decidimos que levaríamos a coisa a sério e iríamos até o fim.”

A questão que os investigadores estão analisando agora é o que significava “ir até o fim”.

Gross insiste que o grupo estava apenas se preparando para o que enxergava como o dia em que a ordem social vai desabar. Disse que seus membros nunca planejaram assassinatos nem pretendiam fazer mal a ninguém. Mas pelo menos um integrante do grupo faz um relato mais tenebroso.

“A ideia era que pessoas seriam arrebanhadas e assassinadas”, disse Horst Schelski a investigadores em 2017, segundo transcrições de seu depoimento compartilhadas com o New York Times.

Schelski é um ex-oficial da Força Aérea. Seu relato é contestado por outros membros do grupo.

Seu depoimento enfoca uma reunião que, segundo ele, aconteceu no final de 2016, numa parada rodoviária de caminhoneiros em Sternberg.

Ali, Gross se reuniu com um punhado de outros homens, integrantes de uma célula concentrada dentro da Nordkreuz. Entre os outros presentes estavam dois homens que hoje estão sob investigação por suspeita de planejar atos de terrorismo.

A lei alemã não permite que sejam revelados seus nomes completos. Um deles era Haik J., policial, como Marko Gross. Outro era um advogado e político local de Rostock, Jan Henrik H.

Schelski disse à polícia que Henrik H. guardava em sua garagem uma pasta grossa com os nomes, endereços e fotos dos políticos e ativistas locais que encarava como inimigos políticos.

Boa parte das informações na pasta vinha de fontes abertas ao público. Mas também havia anotações escritas à mão contendo dados obtidos de um computador da polícia.

Schelski disse à polícia mais tarde que, enquanto eles tomavam café na parada de caminhoneiros, Jan Henrik H. direcionou a discussão para “as pessoas do arquivo”, que, segundo ele, eram “nocivas” ao Estado e precisavam ser “eliminadas”.

Schelski disse à polícia que depois dessa reunião ele se distanciou do grupo.

Nessa época o serviço de inteligência já estava atento à organização. Oito meses após a reunião na parada de caminhoneiros, as autoridades lançaram a primeira de uma série de operações de busca nas casas de vários membros da Nordkreuz.

Nas blitzes realizadas ao longo de dois anos foram encontradas armas, munições, listas de inimigos e uma lista manuscrita de compras para o "Dia X" que incluíam bolsas mortuárias e cal.

Sobre as bolsas mortuárias, Gross diz que eram “bolsas polivalentes” que poderiam ser usadas como coberturas impermeáveis para sacos de dormir ou para o transporte de objetos grandes.

Promotores rastrearam as munições ilegais encontradas na casa de Gross e identificaram suas origens em uma dúzia de depósitos militares e da polícia pelo país afora, um indício de possíveis colaboradores da Nordkreuz. Várias das unidades praticavam tiro em Güstrow.

Três outros policiais estão sendo investigados por suspeita de ajudar Gross, indiciado apenas por posse de armas ilegais. Questionado durante o julgamento, afirmou não se lembrar de como obteve as munições. Mas não hesitou em externar outras opiniões.

Gross disse que o lugar da chanceler Angela Merkel “é no banco dos réus”. Qualificou as cidades multiculturais do oeste da Alemanha como “o califado”.

Disse que a melhor maneira de escapar da migração crescente é mudar-se para a zona rural da Alemanha oriental, “onde as pessoas ainda se chamam Schmidt, Schneider e Müller”.

Os membros da Nordkreuz nunca revelaram às autoridades a localização da colônia de férias desativadas que seria seu refúgio seguro para o "Dia X".

Esse refúgio ainda está ativo, disse Gross, que, no auge do planejamento da Nordkreuz, havia se gabado para outro membro que sua rede contava com 2.000 correligionários na Alemanha e fora do país.

“A rede ainda está ali”, disse ele.


Por Katrin Bennhold.

Tradução de Clara Allain.

Reportagem do The New York Times, reproduzida na Folha de São Paulo

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