A janela da minha cozinha dá para o pátio de um estacionamento, geralmente sem ninguém. Mais dedicado do que nunca à tarefa de lavar pratos e panelas, deixo meu olhar estacionado sobre o piso de cimento, entre carros, bicicletas e latas de lixo.
Mas de repente saiu um menininho pela porta de serviço; a mãe, jovem e bastante gorda, surgiu atrás dele.
O garoto era tão pequeno que ainda festejava o fato de saber andar. A cabecinha, ainda desproporcional ao corpo, alterava seu equilíbrio; cada perna dele, muito curta, só ia para a frente devido ao medo de cair no chão.
Não sabia direito nem onde ficava o carro da mãe; ela, objetiva, de chaveiro em punho, atravessava o pequeno pátio. Mas a criança, como uma mosca atacada por inseticida, dava voltas a esmo, intoxicada de ar livre, tonta no puro ato de existir.
Devia estar feliz; fiquei também, naquele momento. Com tantos meses de quarentena, cada pessoazinha que vejo da janela me transmite uma alegria —uma vontade de acenar, de dizer qualquer coisa.
Claro que também ando na rua —supermercado, farmácia, essas coisas. O vazio de antes, que era como um cenário de filme, já não existe mais. Fico então absorvido no espetáculo da variedade humana.
As máscaras atrapalham, é verdade. Mas nem todo mundo usa.
Olha lá aquele jovem alto e branco, mostrando canelas como dois círios de igreja —e piscando muito atrás dos óculos, como se quisesse afastar o vírus das redondezas. Caminha sem pressa, com a calma dos muito magros, e a resignação dos que têm o rosto coberto de espinhas.
Ele para no ponto de ônibus, onde uma senhora atarracada já estava esperando, cansada de segurar a sacola de plástico. Seu vestido parece outra sacola, insuficiente para acomodar tudo o que ela já adquiriu nesses 50, talvez 60 anos de idade. Será portuguesa? Ela respira.
Cada pessoa é um mistério, e cada rosto, uma forma fascinante. Esqueço de fazer qualquer julgamento estético.
A falta de contato parece tornar todo ser humano mais amável para mim; o silêncio de alguém, no ponto de ônibus ou na fila da farmácia, me parece menos impenetrável, menos protegido, mais fácil de quebrar.
Minha timidez diminui; não que eu saia por aí puxando conversa, mas sei que temos, todos, novas coisas em comum. A Covid nos aproxima, apesar do tanto que ficamos afastados.
Qualquer abordagem fica mais natural, diante da situação coletiva; mas é também verdade que se tornou mais delicada. Meio sem saber, acho que de modo geral ficamos mais cuidadosos com os outros; é possível que até assaltantes e trombadinhas estejam evitando maiores proximidades.
E um pouco mais de ajuntamento ganha logo um ar de festa. Eu, que nunca gostei de torcida e Carnaval, e que nas passeatas não consigo gritar palavras de ordem, sinto saudade de aglomerações —quanto mais gratuitas, melhor.
Uma antiquíssima história em quadrinhos, acho que “Belinda”, mostrava de modo positivo a vida de um casal americano de classe média.
Numa das tirinhas, o marido saía do escritório e se despedia do colega. “Marquei de encontrar minha mulher na frente da loja tal.” O colega achava graça: “Coincidência, marquei de encontrar a minha mulher no mesmo lugar”. Os dois brincam: “Não seria engraçado se todos os maridos da cidade tivessem marcado o mesmo lugar de encontro?”.
No quadrinho seguinte, vemos o caos completo no lugar. Milhares de homens se amontoam, ternos e chapéus se amassam, e os mais espertos já carregam cartazes: “Mildred, estou aqui!”.
Às vezes, quando estou a caminho de algum evento mais ou menos importante —um casamento, uma manifestação, uma estreia—, fantasio que toda pessoa à minha volta também está indo para lá. Dentro de cada carro, dentro de cada cabeça, uma pessoinha humana carrega seu propósito; tem seu objetivo, tem seu plano.
Só de saber isso já fico feliz. Na grande maioria dos casos, não há de ser coisa ruim. Buscar os filhos na escola, comprar pão, arranjar um documento: será difícil cruzar com um matador de velhinhas ou um inimigo de gatos e cachorros.
O idiota que ofende um motoboy ou um guarda municipal não é nenhum caso isolado, estou certo disso. A sociedade e a ideologia não têm rosto —e fabricam gente assim. Mas, talvez por ter perdido o costume, o rosto de cada ser humano me encanta hoje em dia; visto de frente, em sua nudez, em seu silêncio, em sua paz de olhos, nariz e boca, não acredito que tenha algo de ruim.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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