Eu trabalho com prevenção e redução da violência há quase duas décadas. De certa forma escolhi trabalhar no campo das políticas públicas, pois tinha muita dificuldade em lidar com a carga emocional e com o sentimento de impotência diante das perdas tão próximas que o trabalho de campo trazia a cada dia. Não é nada fácil digerir as histórias e as lições das mães que perderam seus filhos, as escolhas erradas dos jovens que acabavam arriscando suas vidas por falta de reais oportunidades de um futuro melhor, as conversas com as meninas que engravidam na adolescência em busca de uma identidade, e de algum reconhecimento na sociedade —no país que rouba os sonhos e o potencial de sua gente.
Certamente é menos doloroso lidar com números, projetos e propostas do que diretamente com a tragédia individual brasileira do dia a dia. Nesse sentido, mesmo me deparando com estatísticas absurdas de homicídios e outros crimes violentos todos os anos, de alguma forma consegui manter alguma sanidade mental para seguir meu trabalho, acreditando que algum dia, viver em um país seguro para todos será prioridade não só para alguns, mas para a maioria absoluta dos líderes que governam esta terra sangrenta.
Mas mesmo atuando no nível mais macro, eu nunca me resignei, deixei de me indignar, e de muitas vezes chorar e me deprimir com as inúmeras histórias que chegaram até a mim. Eu me recusei e me recuso a normalizar a barbárie. Se o tivesse feito, já teria mudado de área de atuação. O que nos move e nos tira da cama certamente não é a aceitação.
Eu entendo que a maioria de nós acaba se deixando anestesiar para simplesmente conseguir seguir em frente, para não questionar a razão da nossa própria existência frente a tanta brutalidade e tanta dor. Se pensarmos sobre cada tragédia, muitas das quais evitáveis, por vezes, fica realmente difícil achar sentido em viver. Não damos conta de lidar com tanto sofrimento para além da cota nossa de cada dia. Porém, o que eu não entendo é que para uma outra parte de nossa gente o individualismo e o egoísmo imperam, e se não é com os meus, eu não me importo.
E eis que me deparo com o momento atual e mergulho em perguntas e reflexões doídas buscando alguma luz sobre como romper com o culto à morte e à liberdade niilista do vale-tudo que parece alimentar essa outra parcela de nossa população. Agora, às tragédias da violência armada, intrafamiliar e do trânsito se soma a violência da negligência, da irresponsabilidade e do egoísmo que coloca até mesmo uma parcela dos “nossos” em risco.
Cem mil mortos. Cem mil famílias. Milhões de pais, mães, irmãos, tios, primos, amigos, companheiros, colegas de trabalho, sofrendo perdas irreparáveis.
A pandemia encontrou no Brasil o terreno fértil para testar a força de seu poder mortal. E na maré cheia das mortes da Covid-19, os homicídios e a violência doméstica também voltam a crescer.
Confesso não ter respostas. O desafio que eu achava que já enfrentava foi para um nível consideravelmente maior. Como compreender tamanha desumanização?
Vivemos a maldição de um país que não chora seus mortos. Um país que não tem memória, que não aprende com o passado, liderado e apoiado por uma parcela egoísta, que (com exceção dos miseráveis, que não julgo) nos impede de ser uma grande nação.
Não seremos o que queremos ser. Ou resgatamos na maioria absoluta de nós o senso de humanidade e coletividade ou não quebraremos a maldição. Seremos sempre a potência econômica, verde, e humana, de um amanhã cada vez mais distante, sem chance de chegar a ser o hoje que queremos viver.
Texto de Ilona Szabó de Carvalho, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário