sábado, 29 de agosto de 2020

'Normal People'

 Um amigo me falou da série “Normal People”, inspirada no best-seller homônimo da autora irlandesa Sally Rooney. Disse que pirou tanto naquele amor puro e intenso, que ficou meio eufórico e um tanto deprê. Passei dias com suas palavras ecoando na cabeça. Vi frames do seriado quando procurei informações na internet e fiquei obcecada pelo corpo da garota, pelo olhar dela.

Acreditei que assistir à história seria como tomar um elixir da juventude. Ou entrar em uma cápsula do tempo. Eu poderia sentir tudo aquilo de novo? Talvez eu pudesse ser aquela garota muito magra, bastante masoquista e ultrassexualizada. Exatamente os três adjetivos —superlativos— que o antidepressivo tirou de mim. Que saudade deles, que horror de voltar para eles.

O gelo de uma colher na minha língua era sentido até o dedão do meu pé. Isso fazia de mim uma perversa polimorfa maravilhosa. Isso fazia de mim um bebê tentando não ficar em carne viva a cada decepção. Olho para a cartela do Efexor XR com um misto de nojo e fiel agradecimento. Não sei se ajoelho diante dele ou se me curvo para jogá-lo no lixo.

Às vezes penso que deveria existir uma lei psiquiátrica chamada “final de semana da pulsão e do gozo desenfreado”. Imagina se em um sábado eu pudesse amar tanto meus amigos, mas tanto, que os ofenderia. Imagina passar o dia inteiro sem conseguir comer uma alface, me apaixonar sete vezes por quatro pessoas diferentes, talvez chamar todas elas para a minha casa. Mas na segunda cedinho, ufa, passou. Tomei minha “pílula de cabimento” e acordei casada, com meus três empregos e uma filha maravilhosa. Nem sei o que estou dizendo.

De tanto eu perturbar meu marido, ele começou a estudar aqui como faria para baixar os episódios ou acessar de forma ilegal a plataforma Hulu. Eis que descobrimos o Starzplay via Net Claro. Isso aqui está parecendo um conteúdo pago, então, para elucidar que não é, conto que foi bem difícil assinar o tal streaming. Um técnico teve que vir à minha casa mudar o aparelhinho de recepção. Nem sei se chama aparelhinho de recepção. Whatever. Nada disso é o que eu quero escrever.

O que eu quero dizer é que, depois de tudo isso, Pedro resolveu ver uma série de terror no quarto, e eu fiquei sozinha na sala, testemunhando minha adolescência e minha juventude na tela. Eu atraída por garotos populares angustiados que poderiam me fazer sofrer mais ainda. Assisti a cada episódio na companhia de várias das minhas idades e buracos, acariciando a cabeça delas com minha saudade-pavor. Chorando de brotar dançarinas gordas aquáticas da minha cara inteira. O amor dos protagonistas e a química absurda entre eles rasgaram a barreira química do meu cérebro, a camisinha antitristeza da minha mente. Transei com eles, dormi com eles, quase morri com eles. Se você tem 20 anos, por favor, lembre disso: a gente nasce para ter 20 anos. Caso sofra muito, lembre de mim: não existe felicidade maior do que sofrer muito aos 20 anos.

Eu quero demais me livrar desses remédios. Remédio para não ter pânico, para não ficar anoréxica, para não ter mania de perseguição ou arrumar cada canto da casa mil vezes, para não ficar vadia louca, para não chorar 14 vezes por dia e ter ataques de riso antes e depois. Remédio para não ter a dor crônica que vai do meu cóccix ao osso parietal. Graças a Deus eles existem e eu não tenho mais 20 anos. Que seriado foda, meus amigos!


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo


Comentário esclarecedor rápido: o princípio ativo do Efexor referido no texto é a venlafaxina. 


quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Racismo e descaso afetam saúde mental de pessoas negras

 "Eu tinha baixa autoestima, mas não compreendia de fato o motivo. Nunca tinha falado sobre esse assunto antes. Então, tudo passava batido. As humilhações na escola, o preterimento social", afirma a pedagoga Ana Paula Evangelista Neris, 34.

A paulistana usava lentes de contato claras e pó compacto para deixar o tom da pele menos escuro, além de alisar e alongar o cabelo na busca por amenizar o sofrimento.

"Com o passar do tempo e a chegada da adolescência, eu já tinha entendido esse processo, mas não chamava de racismo. Eu pensava que tinha algo errado comigo. Dei início ao meu processo de embranquecimento para me sentir 'normal', mas mesmo assim eu não me sentia aceita. Eu comecei com baixa autoestima e passei a sofrer com ansiedade, 'auto-ódio' e uma tristeza profunda. Também me tornei uma pessoa estressada."

Casos como o de Ana Paula não são exceção numa sociedade moldada pelo racismo estrutural como a brasileira. O preconceito racial produz efeitos negativos na saúde mental e na saúde emocional, e um dos pontos de maior gravidade é o fato de as vítimas nem sempre perceberem a relação entre o sofrimento psicológico e a discriminação.

Embora possa se tornar um gatilho para problemas como ansiedade, depressão e estresse, o tema, porém, não deve ser tratado apenas como uma questão individual, ressaltam especialistas.

"Ser negro em uma sociedade construída sob uma hierarquia étnico-racial nas relações acarreta sofrimentos simbólicos e materiais. No entanto esse sofrimento não se origina no negro. Sua gênese encontra-se na situação social de ser tratado como inferior em um sistema no qual as relações de poder transformam as diferenças em desigualdade", explica o professor livre-docente do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) Alessandro de Oliveira dos Santos.

"O comportamento de uma pessoa negra é mais do que a reação ou o efeito do racismo. Cada um tem um conjunto de repertórios próprios que modulam suas estratégias de lidar com os problemas", diz.

Dados do Ministério da Saúde apontam que a taxa de mortalidade por suicídio entre jovens e adolescentes negros é três vezes maior que a de pessoas brancas do mesmo grupo. O índice permaneceu estável de 2012 a 2016 entre pessoas brancas, mas teve aumento de 12% na população negra. Os dados são da cartilha Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros (2018).

"É possível dizer que existe uma relação [com o racismo]. É um reflexo da ausência da nossa atenção enquanto sociedade às políticas públicas de saúde mental da população negra", afirma Ivan de Sousa Araújo, professor de medicina na Universidade de Salvador.

"O racismo já começa na dificuldade de acesso das pessoas negras à saúde em geral, e isso vai se refletir na saúde mental", diz o médico, membro da Sociedade Brasileira de Psiquiatria.

Para Clélia Prestes, doutora em psicologia social pela USP e psicóloga do Instituto AMMA Psique e Negritude, "a saúde mental precisa ser assumida por todas as pessoas da sociedade, com o racismo sendo compreendido com seu contexto sócio-histórico, como determinante social de adoecimento e como violência que permeia as relações entre as pessoas".

Um dos pontos críticos é o fato de o racismo poder se apresentar em diferentes circunstâncias e sob diversos aspectos.

"O fato de uma pessoa estar sempre sob a tensão de que a qualquer momento pode ser alvo de preconceito gera um estresse excessivo, produzindo respostas fisiológicas, cognitivas e comportamentais associadas a emoções e sensações negativas", explica o professor da USP.

Segundo Alessandro dos Santos, esse estresse pode aumentar a frequência cardíaca e produzir impactos no sistema imunológico, além de prejuízos à saúde que vão de distúrbios gastrointestinais a sintomas esquizofrênicos.

Uma pesquisa da Universidade de Boston divulgada em julho no periódico científico da Alzheimer's Association mostra que o racismo eleva em 2,6 vezes as chances de declínio cognitivo em mulheres negras que sofrem com a discriminação.

Ivan dos Santos Araújo ressalta que é preciso pensar de forma mais ampla. "A saúde mental tem que ser pensada desde a formação dos profissionais. O médico tem que ter em mente também que o racismo é um importante fator social."

Segundo Clélia Prestes, é importante que o racismo não seja tratado como uma questão relacionada às pessoas negras. A psicóloga explica que a discriminação afeta a saúde mental de todas as pessoas em uma sociedade em que o racismo é estrutural.

Para pessoas brancas ou não negras, pode ser doloroso o desafio de passar pelo processo que é deixar de negar o racismo e superar a culpa e a vergonha advindas do reconhecimento de privilégios.

A assistente social Luciana Reis Oliveira, 48, relata que a discriminação lhe provocou problemas com autoestima, ansiedade e estresse.

"Após a graduação é que comecei a entender como a sociedade funciona e como o racismo nos afeta. A partir daí fui procurar ajuda", diz Luciana, que nos últimos dois anos vem tentando lidar com a questão na terapia. A relação com os filhos, um negro e um branco, também passa pelas consequências do racismo.

"Hoje, meu segundo filho tem 17 anos, e ele é negro. Morro de medo de ele sair à noite, controlo muito, até demais. Eu vou mostrando pra ele o quanto a polícia é violenta com os meninos negros", diz Luciana.

Ana Paula, mãe de uma menina de 11 anos, conta que passou por sentimento semelhante. "Eu nunca quis ser mãe e eu não sabia direito o que era racismo. Mas o meu maior medo já era ter um filho homem. Eu dizia, mesmo sem ter consciência, que ter um filho homem era ter problemas com a polícia. E mulheres que não são negras não têm essa preocupação."

É assim, segundo Clélia Prestes, que o racismo acaba atingindo também o entorno social de sua vítima. "Não apenas os familiares, mas atinge toda a sociedade, porque passa a informação de que algumas vidas têm menos valor do que outras. Algumas mortes ficam mais banalizadas", diz a psicóloga.

Segundo ela, quando se fala em genocídio da população negra, deve-se entender que é um genocídio também das expectativas, "da possibilidade de gostar de si mesmo e de gostar de outras pessoas e a possibilidade de viver de forma digna".

Como forma de lidar com os impactos do racismo na saúde mental, o professor Alessandro Santos destaca que é importante desenvolver desde cedo processos educativos que estimulem a ação solidária e cooperativa e a possibilidade de discussão franca sobre as relações étnico-raciais.

Já o psiquiatra Ivan Sousa ressalta a importância de os profissionais de saúde tratarem com maior receptividade os pacientes que chegam aos consultórios. "Acolha, valide este sofrimento. Com o tempo, as possíveis questões sobre racismo vão aparecer. Não tentar compreender quem é esse sujeito pode ser outra forma de causar sofrimento."

Para Ana Paula, o apoio externo foi fundamental na reconstrução da autoestima. "Na faculdade tive contato com outras mulheres negras e com uma professora também negra. Elas foram me apresentando elementos da cultura afro. Com o apoio delas, fui me empoderando e criando coragem para enfrentar essa situação."


Reportagem de Tayguara Ribeiro, na Folha de São Paulo.

Paraguai condena Ronaldinho Gaúcho a voltar para o Brasil

 Assunção — A Justiça do Paraguai bateu o martelo sobre o caso de Ronaldinho Gaúcho. Por decisão unânime, o ex-jogador foi condenado a voltar para o Brasil.

O craque foi detido em março, após entrar no país com passaporte falso, num dos momentos mais trágicos de sua carreira desde a participação no disco de Jorge Vercillo.

O fato de ter sido eleito embaixador do turismo por Jair Bolsonaro tornou o incidente ainda mais grave. “É a prova de que o Brasil é o Paraguai do Paraguai”, comentou, na época, o presidente paraguaio. Em sua defesa, Ronaldinho alegou que, ao pedirem um passaporte paraguaio, entendeu que o documento deveria ser falsificado.

Com a chegada do coronavírus, o que parecia ser um desastre se tornou um golpe de sorte. Enquanto os casos disparavam no Brasil, o ex-jogador se aproveitava do baixo número de infectados e do conforto de sua “prisão” num hotel de luxo no Paraguai. O país tem tido sucesso no controle de casos de Covid-19, com pouco mais de 200 mortos. Diferente do Brasil, que já ultrapassou 116 mil óbitos.

Os vergonhosos números brasileiros, somados a outras tragédias, como a reunião ministerial e a performance de “Asa Branca” na live de Bolsonaro, ajudaram na decisão do jogador de nunca mais voltar.

“Só maluco para voltar para o Brasil quando se pode curtir uma bela piscina de hotel, tocando um pandeirinho, com vista para o rio Paraguai?”, comentou um amigo e companheiro de rolês aleatórios.

O craque já tinha formado uma roda de samba com hóspedes do hotel, o que pode ter influenciado a decisão da Justiça de retirá-lo do país o quanto antes.

Os advogados tentaram de todas as formas recorrer da decisão. Sugeriram até que o ex-jogador passasse um mês fazendo compras nas lojas Monalisa Paraguay, considerado o maior castigo paraguaio. Mas o júri foi impiedoso e deu a sentença máxima de voltar ao Brasil.

Além do retorno, Ronaldinho foi condenado a assistir à conversa de Bolsonaro com Al Gore no modo repeat, suplício até para quem já foi bolsonarista declarado.

O ex-jogador perdeu seus patrocinadores paraguaios, Nice, Ardidas e Reboque. Logo após sua saída, o Paraguai fechou novamente as fronteiras, para impedir a entrada do coronavírus e de Ronaldinhos Gaúchos.


Texto de Flavia Boggio, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Por que o Queiroz depositou R$ 89 mil na conta da Michelle?

 Entendo a raiva do presidente ao ser questionado sobre as finanças da sua mulher. Também fico chateado quando me perguntam algo que eu não posso responder. “Por que seus olhos estão vermelhos?” Ou “você já deixa sua filha ver televisão?”. Se não queres ouvir uma mentira, não perguntes um segredo.

Mas pra isso serve a imaginação, e pra isso servimos nós, ficcionistas. Cabe a nós imaginarmos quais seriam os motivos possíveis pra um cheque tão generoso. Inúmeros são os motivos pra se fazer um depósito dessa quantia —muito embora tão pouca gente o tenha feito pra mim.

O primeiro que me ocorre é o ágio. O presidente já afirmou ter emprestado R$ 40 mil ao melhor amigo e ex-motorista. Os R$ 49 mil restantes correspondem, obviamente, aos juros —a Selic pode ter baixado, mas o spread continua alto— especialmente entre agiotas. O presidente mostra que trata todos como iguais: não é por se tratar de um amigo que há de se emprestar sem ágio. Alguém precisa pagar o leite condensado das crianças.

Não podemos tampouco descartar a hipótese do adultério. Isso justifica a revolta do presidente: é chato ficar sabendo pela imprensa que um marmanjo anda depositando somas altas na conta da "conje". Isso explica também o nascimento da única filha mulher do presidente. Quem conhece o presidente sabe que ele não fraquejaria. Seus cromossomos são YY. Dali não sai nenhum XX.

Queiroz, pelo contrário, tem duas filhas mulheres, provando que tem por hábito fraquejar. O pagamento corresponderia, obviamente, à pensão da varoa. Ninguém espera que o presidente pague pela fraquejada alheia.

Pode, também, se tratar de um golpe complexo, muito comum entre parlamentares, famosos pela ingenuidade. Acontece mais ou menos assim: a pessoa fica anos trabalhando como motorista do seu filho, consegue o número da conta da sua mulher e, quando você menos espera, bum! Deposita R$ 89 mil. Pronto. Daí você tem que se virar pra gastar esse dinheiro.

Chocolate. Quem já foi a uma loja da Kopenhagen sabe que a Nhá Benta está pela hora da morte. Pode ser que Queiroz tenha ido tomar um cafezinho com a patroa e, na hora de pagar a conta, tenha esquecido a carteira, a generosa patroa convidou, e os R$ 89 mil coincidem com o combo: expresso e Nhá Benta de maracujá. Isso justifica também os R$ 400 mil que ele depositou na conta do Flávio. Tenho a impressão que a soma corresponde a um pacote de Língua de Gato.


Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Quem precisa de carboidratos?

 Já vou avisando: resolvi comprar briga com a população educada e os nutricionistas que engoliram a tal pirâmide nutricional empurrada literalmente goela abaixo dos consumidores pelo lobby das empresas fabricantes de cereais e dos cada vez mais variados “alimentos industrializados”. Essa parte da história eu deixo pra outras pessoas contarem, ou para os curiosos investigarem por conta própria. A parte que me cabe é a que tem a ver com seu cérebro.

A questão é que cientistas de várias especialidades se acostumaram a pensar na glicose como a principal fonte de energia do corpo e nos carboidratos como fonte de glicose. Quebrar os carboidratos do amido de farinha, batata, arroz e cereais em pedaços de glicose e queimar a glicose como fonte de energia vital são de fato triviais para o corpo.

Mas ingerir carboidratos é completamente desnecessário —e, segundo um estudo recente, contribui para a desestabilização progressiva do funcionamento do cérebro (já explico o que isso significa).

Ingerir carboidratos é desnecessário porque as células do corpo sabem fazer glicose quando preciso e construir carboidratos longos usando-a como bloco elementar. Mas há nove aminoácidos que o corpo humano não fabrica e ao menos dois tipos de gordura. Esses têm que vir da comida, donde uma dieta baseada em proteínas e gorduras, com só um pouquinho de carboidratos salpicados no topo — exatamente o inverso do que a indústria vem promovendo —é não só o que o corpo precisa como espera.

Consumindo primeiro proteínas e gorduras, toda glicose extra vira depósito de gordura, armazenada em pneus e placas pelo corpo.

Medir o consumo de glicose do cérebro é fácil e tem dominado os estudos na área, mas já se sabe que o cérebro usa perfeitamente bem as cetonas derivadas das proteínas e gorduras da dieta.

E muito além: segundo pesquisadores da Universidade Stony Brook, nos EUA, e da Universidade de Oxford, no Reino Unido, a partir dos 40 anos diminui a capacidade do cérebro de se manter “concentrado” em um tipo de atividade enquanto “não faz nada”, sem alternar, por exemplo, entre privilegiar visão ou audição ou introspecção.

Mas isso é o que ocorre com a dieta “normal”, a da tal pirâmide alimentar baseada em carboidratos. Quando os voluntários do estudo mudaram para uma dieta cetogênica, ingerindo menos de 50 gramas de carboidratos por dia, sua atividade cerebral em repouso se tornou imediatamente mais estável.

Os pesquisadores declaram abertamente ter interesse financeiro em suas descobertas, pessoas inteligentes que são. Se alguém vai lucrar com isso (e alguém obviamente vai), por que não os próprios autores da pesquisa?


Texto de Suzana Herculano-Houzel, na Folha de São Paulo

Nem o conto de fadas mais sanguinolento prepara as meninas para a vida real

 Era o período pré-“Frozen”, quando os filmes de princesas da Disney ainda eram dignos do selo Damares de Storytelling. Eu tinha seis anos de idade e fui presenteada com um livro da Cinderela. Estranhei aquela princesa com cabelos castanhos ondulados e revoltos que se emaranhavam pela capa, e em nada me

lembravam o coque loiro sem um fio fora do lugar da Cinderela do desenho animado.

Não reparei no subtítulo —e acredito que minha mãe tampouco—que dizia “conto original dos irmãos Grimm”.

Li a história brincando de jogo dos sete erros, apontando as diferenças entre a versão soft da Disney, que já conhecia. No conto original, o pai da Cinderela não morre, apenas se casa novamente e é testemunha omissa dos maus-tratos sofridos por sua filha. Pelo simples fato de não fazer nada, o morto-vivo se destacava como um vilão à altura de sua nova mulher.

Cinderela chorava no túmulo de sua mãe quando uma pomba prometeu cumprir todos os seus desejos. Eu ainda comprava narrativas com animais falantes, mas onde já se viu um conto de fadas sem fadas? Um conto de pombas?

Pois é a pomba que descola o look para Cinderela lacrar no baile, o que nos leva ao quiprocó do sapatinho e dá início à carnificina. O príncipe, que devia estar embriagado o suficiente para não se lembrar da fisionomia de seu grande amor, se lança em uma saga envolvendo todas as donzelas do reino.

A irmã postiça de Cinderela se tranca e volta com o par de sapatos, que serviu perfeitamente. A caminho do palácio, a pomba denuncia o sangue que escorre dos pés dela. A personagem mutilou o próprio dedão para caber no sapatinho 36.

A madrasta pede à segunda filha: “Corta fora teu calcanhar, quando fores rainha não precisarás andar a pé”. Quem precisa de um calcanhar quando se tem um bom marido, não é mesmo? Elas só não contavam com a pomba xis nove, que mais uma vez aponta o rastro de sangue na trilha da floresta.

O final da história é quase o mesmo. Cinderela se casa com toda a pompa. As irmãs aproveitadoras participam da cerimônia e as pombinhas justiceiras arrancam os olhos delas.

Fechei o livro em absoluto horror, mas não foi ali que perdi minha inocência. Algum tempo depois, com dez anos de idade, fui beijada e tocada por um velho amigo da família. Nem o conto de fadas mais sanguinolento prepara as meninas para a vida real.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

Sean Connery conseguiu fazer o seu mito superar o de James Bond

 Em 7 de setembro de 1963, quando “O Satânico Dr. No” aportou no Brasil, os rapazes da época não demoraram a notar que sua vida havia mudado —existia um novo modelo a invejar e copiar.

Elvis ficara para trás. O novo nome era Bond, James Bond.

Na verdade, Bond, o agente 007 a serviço de Sua Majestade era inimitável. Não lhe bastava ser forte, valente, ágil, bonito, seguríssimo de si. Ainda guiava os carros mais espantosos, tinha a seu dispor os gadgets mais modernos, enfrentava os inimigos mais cruéis sem perder a pose, nem a elegância. Junto com os Beatles e Mary Quant, trazia um sopro de modernidade ao Império Britânico, que àquela altura se desmontava. E 007 tinha nome —Sean Connery, que agora completa 90 anos.

Naquela altura dos acontecimentos era um ator pouco conhecido, e não é de espantar que Ian Fleming tivesse preferido Roger Moore para o papel. Mas Moore estava ocupado e Connery tomou o seu lugar. Fleming teria seu desejo satisfeito “post mortem”, já que após o seu sexto filme da série —“007 – Os Diamantes São Eternos”, de 1971,— o primeiro James Bond se encheu de ser confundido com
James Bond e pediu as contas.

Então entrou Roger Moore e 007 nunca mais foi o mesmo. Não que Moore fosse ruim. Só não tinha o carisma de Connery. Depois de Moore outros vieram. Bons atores, em geral. O último deles, Daniel Craig, até ajudou a ressuscitar a série. Mas como Sean
Connery não houve outro.

Não foi por falta de tentar que Connery não conseguiu se livrar da pele de Bond. Nem Hitchcock resolveu o problema. Em “Marnie, Confissões de uma Ladra”, ele fez o rico, chique e bonitão Mark Gabel, que se arrasta aos pés da ladra, com quem se casa para continuar sendo rejeitado. Na verdade, o filme não foi bem de bilheteria, e Hitchcock achava que Connery não parecia “um gentil-homem da Pensilvânia”, como ele gostaria.

Com efeito, sob a pele blasé do agente 007 havia um filho da classe operária escocesa, nascido em 25 de agosto de 1930 em Edimburgo, que teve uma penca de empregos até os 23 anos, quando ultrapassou a dúvida entre ser ator ou jogador de futebol. Ser ator foi a escolha certa, ele acha.

Não faltaram tentativas de ser marcante noutra pele que não a do agente secreto, entre outras no faroeste “Shalako”, de 1968, com Brigitte Bardot, ou ainda trabalhando com diretores de peso, como Martin Ritt, Sidney Lumet, John Boorman, Richard Lester, John Milius ou John Huston.

Duas coisas elas provaram —o nome Connery não bastava para garantir o sucesso dos filmes em que ele trabalhava e não é fácil se livrar da pele de James Bond.

Foi preciso voltar ao papel, em “007 - Nunca Mais Outra Vez”, de 1983, um Bond feito fora da série original, para enfim exorcizar o personagem, como se uma reconciliação fosse necessária para que o ator, o agente e o público tocassem a vida em frente.

Já cinquentão, Connery pôde esquecer o galã intrépido da juventude e, de certa forma, sublimar sua imagem. Podia ser o ator principal, como em “O Nome da Rosa”, de 1986, em que vive um cerebral frade, mas passou a brilhar sobretudo em papéis coadjuvantes.

O que seria de “Os Intocáveis”, de 1987, sem a presença de Jim Malone, o incorruptível guarda de rua que rouba a cena do suposto herói Elliott Ness? O que seria de “Indiana Jones e a Última Cruzada”, de 1989, não fosse Connery o pai de Indiana?

Provavelmente seriam bons filmes, mas não tão bons. Sean Connery melhorava os filmes em que fazia o segundo papel.

Aliás, “Os Intocáveis” rendeu a ele o Oscar de melhor ator coadjuvante. E depois dele uma penca de recompensas, entre elas a Legião de Honra do governo francês, em 1991, e, sobretudo, o título de sir, concedido pela rainha Elizabeth, a quem tanto serviu na juventude. Título que ele fez questão de receber na Escócia, vestido com o traje kilt. Que ficasse claro para a rainha que ele continuaria a apoiar o Partido Nacional Escocês, defensor da independência escocesa.

O mito de Sean Connery havia, enfim, triunfado sobre o mito de 007. Já podia, aos poucos, discretamente, se afastar do cinema para viver sua aposentadoria nas Bahamas.


Texto de Inácio Araújo, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

No more lives

 Não custa nada fazer uma live. Você não precisa sair de casa nem tirar o pijama. Meus pijamas são todos pretos, então estou sempre pronta para fazer uma live. Meu escritório tem uma bela estante de livros, logo eu já nasci pronta para as lives. Sempre que alguém me convida para uma fucking live (e isso acontece pelo menos duas vezes a cada semana), eu penso em recusar. Eu nem termino de ler ou ouvir o convite e já vou encostando a língua atrás dos incisivos centrais para dizer não.

Minha vontade, na real, é responder: “Não, pelo amor de Deus, apenas parem, por favor, socorro!”. Mas acabo topando.

Eu não aguento mais fazer ou ver lives. Às vezes, no meio de uma live de que topei participar, vai me dando uma leve vontade de desfalecer. E eu me prometo, me juro, que nunca mais farei uma live. Mas faço outra e mais outra. Porque, no fundo, não me custa nada. Talvez me custe o bom humor e a disposição de seguir viva durante o dia do evento. Mas faço de casa e de pijama.

A verdade é que não custa nada fazer uma live. Se a pessoa que me chama tem alguma ligação com cinema ou televisão, tenho medo de fechar portas. Se é jornalista, tenho medo de estar negando carinho a esse guerreiro sobrevivente. Se é de editora, eu faço por devoção a essas boas almas que ainda insistem na existência de um mercado editorial. Se é psicanalista, eu faço porque é minha mais nova profissão-fetiche. Eu gosto das pessoas que me pedem lives, mas odeio que elas me peçam isso. E odeio fazer ou ver lives. Odeio. Muito. Mas não me custa nada e acabo fazendo.

Negar uma live é como negar um bom-dia, um “quer?” ao abrir um chocolate. Não é nada disso. Live toma meia hora ou uma hora do seu dia. E umas cinco horas antes da live eu já estou tão puta da vida por ter topado essa chateação, que não consigo fazer mais nada a não ser me martirizar e esperar pela live. E umas duas horas depois eu ainda estou cansada, porque fico exausta e sofro antes, durante e depois da live.

E quando, na live, a pessoa me pergunta sobre método de trabalho (que, no meu caso, consiste apenas em sentar na frente do computador e escrever) ou sobre “o que meu livro tem de verdade e o que tem de inventado” (como se fosse dado a quem escreve ter essa noção), eu sinto a grosseria subindo pela minha laringe. Eu sinto a bile tomando forma de palavra. Mas apenas respondo que prefiro trabalhar pela manhã. De preferência depois de regar plantas, entoar mantras e alisar um gato preto. Porque eu me cobro, uma vez que topei a caralha da live, ser excêntrica, especial e misteriosa. Isso tudo, toda semana. E eu recebi um e-mail do diretor de redação deste jornal me pedindo que não usasse mais palavrão nos meus textos, mas não dá pra falar de live sem usar “caralha”.

Apesar de me custar demais fazer lives, não custa nadinha. Não precisa estudar o tema, porque os assuntos são sempre “filhos na quarentena”, “casamento na quarentena”, “criatividade na quarentena”, “sexo na quarentena”, “depressão na quarentena”, “home office na quarentena”, “home office x homeschooling na quarentena”, “ainda dá pra chamar cinco meses de confinamento de quarentena?” —e teve um cara que ousou bastante e me convidou para falar apenas de quarentena mesmo.

Pedir live já é pior do que pedir orelha de livro ou divulgação “da lojinha da minha prima” no Instagram. Essas coisas que a gente faz sem ganhar um centavo, apenas no amor, mas odiando quem pediu. Chega! Não faço mais! Eu sei que não me custa nada, mas bem que poderia começar a custar a quem pede.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo    

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Ideia fixa também é uma doença

 Em seu romance “A Montanha Mágica”, passado num sanatório para pacientes de tuberculose na Suíça, o escritor alemão Thomas Mann (1875-1955) resume o modo como a doença afeta a percepção que os seres humanos têm de si e do mundo.

“A doença torna os homens mais físicos, priva-os de tudo o que não seja corpo”, escreve. O corpo doente se transforma no mundo inteiro, e o lado de fora se esvazia de sentido até que “todos os dias” viram “o mesmo dia se repetindo”.

Essa capacidade que demonstra o corpo de se impor como “importante e independente do resto” por meio da morbidez tem me ocorrido ao pensar em como a doença brasileira nos impede de falar de qualquer assunto que não seja... a doença brasileira.

Quando digo isso, estou usando a doença como metáfora (com licença, Susan Sontag) do complexo de mazelas políticas e civilizacionais que, velho de séculos, acabou por nos conduzir ao quadro agudo de autodestruição chamado governo Bolsonaro.

Como falar de outra coisa? O corpo precisa concentrar seus recursos na doença, em compreendê-la e combatê-la. Ser monotemático e obsessivo nesse caso não é apenas louvável. É —ressalvado algum impulso suicida— inevitável.

Mesmo assim, pensar nisso dá uma pena danada. Eu vejo as melhores cabeças da minha geração —e das gerações abaixo e acima da minha— gastarem tempo e energia combatendo gente desclassificada que se empenha em destruir conquistas civilizatórias sacramentadas há décadas.

Pior: eu as vejo obrigadas a agir assim sem parar, como se todos os dias fossem “o mesmo dia se repetindo”, nas palavras de Mann. A tal ponto que ninguém consegue fazer mais nada.

Quantos poemas de amor nunca serão escritos por causa disso? Quantas canções de celebrar colheita ou descrever o mar, de desafiar os deuses ou brincar infantilmente com os sons das palavras?

Quantos dramas teatrais sutis sobre a incomunicabilidade, o envelhecimento, o medo da morte, a permanência da arte? Quantas reflexões e teses luminosas sobre os mais variados aspectos envolvidos na tarefa de compreender e aprimorar a trágica —mas de alguma forma bela— experiência humana na terra?

Nada disso. Danem-se o universal, o atemporal, o lúdico, o sutil, o carnavalesco, o gesto gratuito, o gesto laborioso. Danem-se a lenta pesquisa científica, a lavoura abnegada dos professores, tudo aquilo que depende de uma mínima estabilidade para que, passando, os dias conduzam ao futuro dos organismos não mórbidos.

Revogue-se, para resumir, toda forma de alegria, tristeza, esperança ou preocupação que não seja pautada no presente histérico. Os sintomas da doença se multiplicam, se agravam, exigem respostas enérgicas de todos os órgãos que ainda são capazes de reagir.

Oi? Monstros que se autointitulam “pró-vida” infernizam a vida de uma menina de dez anos grávida do tio que a estuprava? As muitas camadas de horror sobrepostas não deixam margem a dúvida: como falar de outra coisa?

O Brasil sempre foi meio autocentrado. Não dá para negar que nossas iniquidades históricas —a violência inadmissível que toleramos, a hipocrisia terminal de nossa elite, o racismo e o machismo nosso de cada dia, a dificuldade tragicômica de nos enxergarmos no espelho— são temas fundamentais.

Fundamentais, mas não exclusivos. A vida é mais, tem que ser mais. A menos, claro, que uma ameaça de morte seja tão real e imediata que cancele todo o resto.


Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo

Se homens engravidassem, presidente mandaria fabricar pílula abortiva

 Na terceira temporada da série “Veep”, a vice-presidente Selina Meyer, interpretada por Julia Louis-Dreyfus, pressionada a rever sua postura pró-aborto, desabafa. “Se os homens engravidassem, seria possível realizar aborto em caixas eletrônicos.”

A frase viralizou após o lamentável episódio de domingo, envolvendo pessoas de movimentos supostamente “pró-vida” e “pró-família”.

Embora ainda utilizados para depósitos fracionados, como fez o filho do presidente, os caixas eletrônicos entraram em desuso, assim com as agências físicas. Se os homens engravidassem, clínicas de aborto seriam tão frequentes quanto farmácias. Essas sim abrem em cada esquina, shopping, aeroporto e posto de gasolina.

Se os homens engravidassem, realizar um aborto seria como ir à sorveteria. Eles fariam filas na calçada. Pílulas do dia seguinte viriam nos sabores “Cioccolato” e “Fregola com Avocado”.

Se os homens engravidassem, seria possível abortar por aplicativo de delivery. Com um clique no iFood, qualquer rapaz pediria seu aborto junto com um hambúrguer artesanal.

Se os homens engravidassem, anticoncepcionais seriam distribuídos de graça no trânsito e portas de padaria, como panfletos de imobiliária. Não seriam as bombas hormonais que causam depressão
e trombose. Se fossem, dariam um jeito de fazer as mulheres tomarem.

Se os homens engravidassem, menstruação não seria sinônimo de prisão e vergonha. Absorventes como Sempre Livre e Intimus se chamariam Você É Perfeito e Homem que É Homem Menstrua Bonito. Eles escancarariam suas variações hormonais à vontade, socariam paredes e todos diriam que isso é natural do homem. Pera, isso já acontece.

Se os homens engravidassem, o atual presidente mandaria o Exército fabricar pílula abortiva como se fosse cloroquina. Ergueria a embalagem para o pessoal do cercadinho e sairia correndo oferecendo para a ema. Aí sim faria algo pela saúde pública do país.

Se os homens engravidassem, os supostos movimentos “pró-vida” defenderiam, de fato, a vida. Estariam na frente de um hospital para defender uma criança violentada em risco, não a atacar. Lutariam contra adultos abusadores, não menores vulneráveis.

Os homens não engravidam. Mas ainda decidem sobre os corpos das mulheres.


Texto de Flavia Boggio, na Folha de São Paulo

Sou alérgico ao argumento 'você não pode falar dos negros porque não é negro'

 Adolph Reed é um pensador de esquerda, professor emérito na universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Já faz tempo que ele manifesta sua antipatia pela “política das identidades” —resumindo, pela ideia de que nossa identidade (nossa raça, nossa orientação sexual etc.) deveria ser o critério decisivo na hora de escolher nossas alianças políticas.

Mesmo hoje, depois do assassinato de George Floyd e do crescimento do movimento Black Lives Matter (as vidas negras importam), Adolph Reed continua perguntando se o principal problema americano é mesmo o racismo ou a pobreza dos marginalizados do sistema, seja qual for a etnia deles. Ele acredita que algum progresso só possa vir da luta comum dos desfavorecidos de todo o mosaico americano.

Na semana passada, Reed, convidado para proferir uma palestra, acabou cancelando o evento diante das ameaças de protestos.

O termo “política das identidades” foi inventado nos anos 1970 por um grupo de feministas negras lésbicas em Boston, no estado de Massachusetts. Elas achavam que 1) o movimento feminista era racista e 2) o movimento dos direitos civis era homofóbico. Decidiram respeitar a especificidade de sua identidade, de lésbicas e negras.

Obviamente, a objeção à política das identidades é que ela fragmenta qualquer frente unida de ação política.

A política das identidades é amiga do conceito de “lugar de fala”, que poderia ser um bom jeito para cada um de nós se interrogar sobre as motivações silenciadas (e ignoradas de nós mesmos) de nossas ideias e declarações —tanto na esfera pública quanto na privada.

Sou sensível aos argumentos de Djamila Ribeiro (“O que É Lugar de Fala?”, Letramento): é crucial levar em conta a organização do poder ao redor de uma fala.

Mas receio a estupidez dos argumentos “ad hominem”. O argumento “ad hominem” consiste em anular uma proposição por uma crítica ao seu autor. Quando não estamos a fim de responder a uma crítica ou não sabemos como, a solução é simplesmente atacar quem a enunciou. O caso de Adolph Reed, que mencionei, é interessante porque Reed (só agora me dou conta que nem sequer mencionei esse fato) é negro: ele não pode ser silenciado simplesmente com o argumento de que não teria como falar sobre ou contra a política de identidades “por ele ser branco”.

No conceito de lugar de fala, tudo o que é argumento “ad hominem” me parece uma falácia. O resto me parece mais um instrumento para sondar as nossas motivações.

Como psicanalista, constato, justamente, que as tais motivações são sempre mais complexas e misteriosas do que parecem a nós mesmos e a quem nos escuta.

E os militantes progressistas deveriam se lembrar de que, de Lênin a Mao, de Castro a Ho Chi Mihn, de Marx a Engels, os que mais falaram em nome do proletariado eram todos rebentos de classes abastadas. De onde falavam, então?

Resumindo, não concordo inteiramente com Adolph Reed, mas fujo dos excessos da política das identidades, sobretudo quando ela produz argumentos “ad hominem” (ou “ad mulierem”), como aconteceu recentemente ao redor das críticas que Lilia Schwarcz moveu ao novo filme de Beyoncé.

Ou seja, sou alérgico aos argumentos “você não pode falar dos negros porque não é negro” ou “não pode falar dos gays porque não é gay”. Até porque, inversamente, ser negro ou gay não impede ninguém de falar as piores asneiras, inclusive contra negros e gays.

Agora, também existem dimensões concretas e cotidianas da experiência (de ser negro ou gay ou de viver em qualquer margem social) que são cruciais e constitutivas da identidade de um indivíduo e do lugar de onde ele fala.

Por exemplo, é diferente falar do lugar de quem lê, o tempo inteiro, no olhar dos outros, repulsa, desconfiança, desaprovação quando não ódio. E é possível que, sem essa experiência específica, algo faça falta à nossa capacidade de compreender o mundo no qual o negro, por exemplo, vive.

O melhor filme deste ano até agora é, para mim, “Queen & Slim”, de Melina Matsoukas. Está na Apple TV desde sexta passada, e espero que chegue logo a plataformas mais populares. É a história de um casal negro que, no seu primeiro encontro, tem um “acidente” que o projeta num thriller tanto mais trágico por ser involuntário.

Não perca sob nenhum pretexto: raramente me foi dado enxergar de tão perto o que significa, concretamente, ser negro.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Quando a carteira fala mais alto

 Gosto muito da expressão “put your money where your mouth is”, algo como “coloque seu dinheiro onde sua boca está” —perdão pela ignorância se tivermos algo equivalente. É como dizer: se o que você fala é isso tudo mesmo, por que não aposta? O inverso é bem válido. Costumo achar mais produtivo olhar para onde as pessoas estão colocando o dinheiro delas do que o que falam. Assim entendemos o negacionismo.

Ainda temos uma discussão sobre o papel humano no aquecimento global, como se a questão estivesse em aberto, graças ao financiamento de campanhas de desinformação por companhias de petróleo como a Mobil Oil. A mesma empresa que desenhou plataformas de exploração perto do Ártico que dependem do derretimento do gelo para serem viáveis. Plataformas que são construídas levando em consideração o aumento do nível do mar. Aquele aumento que em público dizem ser um exagero.

Um esforço conjunto da faculdade de jornalismo de Columbia, a Columbia University Graduate School of Journalism, e do jornal Los Angeles Times mostrou como as grandes produtoras de petróleo mundiais como a Exxon construíram plataformas, dutos e estradas se prevenindo contra tempestades mais severas ou o aumento do nível do mar previstos pelos modelos climáticos que descrevem o aquecimento global. Preveniram-se do aquecimento que ajudam a causar. A boca dizia que isso é um mito, que as mudanças são incertas e os modelos climáticos estão errados. A carteira pagava para proteger os investimentos contra esse mito, usando os modelos, desde pelo menos 1989! No que acreditar? Tendo a achar que ações falam mais alto.

Covid-19 é um risco ou um exagero? Muitos empresários, cujo sucesso depende de entender projeções matemáticas, crescimento exponencial e estatística básica, defendem que a quarentena está acabando com a economia e deveríamos retomar a vida normal. Seus funcionários deveriam ter escolas funcionando onde deixar os filhos. O comércio já deveria ter normalizado. As pessoas precisam trabalhar. Vários ótimos argumentos. Feitos pelos empresários da segurança de casa, claro. Do autoisolamento. Até vemos negadores circulando, abraçando pessoas na rua e sem máscaras. Mas entre quem tem um pouco de inteligência, a história é outra.

Entre empresas que vivem de inteligência de dados, como o Google, todo mundo entrou em home office desde o começo de março, e vai continuar até o meio de 2021. Pelo menos. Uma empresa que analisa dados e tendências entre as mais valiosas do mundo já tinha mandado seus funcionários para casa antes dos países começarem a decretar quarentena. E não vai trazê-los de volta tão cedo. Mas funcionários do Google podem trabalhar remotamente. E quem não pode, o que faz? Que tal olhar para onde vai o dinheiro de novo.

Enquanto alguns de seus cidadãos se negam a usar máscaras, os EUA tentaram impedir a fabricante de máscaras 3M de exportar o equipamento produzido no país para o Canadá e a América Latina. Máscaras deveriam ser de americanos. Além de comprar doses prioritárias de várias vacinas em desenvolvimento, também tentaram comprar a exclusividade da candidata alemã CureVac. Não uma dose, não boa parte das doses, todas.

Nós distribuímos “kit Covid” para as pessoas retomarem a vida, uma combinação de cloroquina e ivermectina que tem a mesma comprovação para prevenir a doença que uma fitinha do Senhor do Bonfim, mas com efeitos adversos. Já os EUA compraram praticamente toda a produção inicial do medicamento remdesivir, porque ele parece ser promissor, ao mesmo tempo que nos mandaram a cloroquina que não estão usando. Trump defende que cloroquina funciona. Eu prefiro olhar para onde ele coloca o dinheiro.


Texto de Atila Iamarino, na Folha de São Paulo

O bacalhau e o segredo da existência da América

 Em busca de novas terras e riquezas, a partir do século 8 os viquingues fizeram diversas viagens marítimas para ocidente. Tinham aprendido a preservar o bacalhau, secando-o ao vento, e isso garantia alimentação nutritiva durante as longas viagens no mar.

Por volta do ano 1000, chegaram às costas do Canadá, onde se instalaram: foram encontrados vestígios de uma povoação nórdica na Terra Nova. Mas a presença durou pouco, e logo o segredo da existência da América se perdeu novamente para os europeus, até a chegada de Cristóvão Colombo em 1492. Ou será que não?

Na Europa da Idade Média, sujeita a inúmeras restrições religiosas ao consumo de carne de animais terrestres, havia forte demanda por carne de baleia. Os pescadores do País Basco, no norte da Espanha, foram os primeiros fornecedores comerciais, já a partir do século 7. Inicialmente, caçavam em seu próprio Golfo da Biscaia, mas foram expandindo o raio de ação. Desse modo, entraram em contato com os viquingues, com quem talvez tenham aprendido alguns truques.

Os bascos também usavam o bacalhau como suprimento de viagem, mas fizeram um avanço importante: além de secar, salgavam o peixe, o que melhora o sabor e aumenta a durabilidade. Os avanços na construção naval possibilitavam viagens cada vez mais longas.

Com a demanda por bacalhau crescendo na Europa, os bascos tornaram-se seus maiores fornecedores. Muitos outros o pescavam, sobretudo no Mar do Norte e nas costas da Islândia, mas ninguém via os bascos por lá. Onde tinham acesso a tanto peixe? A suspeita é que conhecessem os ricos bancos de bacalhau do Canadá, mas teriam guardado o segredo ciosamente.

Meus ancestrais portugueses também tinha bom faro nessa matéria, claro. Embora mais ocupados com o Atlântico Sul (África, Brasil), na busca do caminho marítimo para a Índia, fizeram explorações ao norte. Em 1473, o navegador João Vaz Corte-Real (1420-1496) foi enviado pelo rei Afonso V à Dinamarca para participar numa expedição que visava reestabelecer a ligação do país com a Groenlândia, quebrada no início do século, com o abandono das colônias viquingues. A partir daí, teria organizado expedições à costa da América do Norte, em particular “descobrindo” a Terra Nova.

Outro que chegou logo depois, em 1497, foi o italiano Giovanni Caboto, a serviço do rei da Inglaterra. Mas um mapa de 1502 aponta a ilha como domínio do rei de Portugal, e muitos lugares lá têm nomes originalmente portugueses (“Cape Spear” era “Cabo Esperança” etc). Aliás, o nome completo, dado por Corte-Real, era “Terra Nova do Bacalhau”, e isso diz tudo...


Texto de Marcelo Viana, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Após Guedes dizer que livro é coisa da elite, dei um inesperado pulo social

 Desde que Paulo Guedes disse mais uma de suas máximas, a de que livro é coisa da elite, dei um inesperado pulo social. De remediada a rica em algumas páginas. Sempre pensei que não viveria o bastante para ver minha ascensão na pirâmide e agora estou aqui, mergulhada nas minhas estantes, qual o Tio Patinhas dando tchibuns em sua piscina de dinheiro.

Na reforma tributária ideal do ministro, o mercado editorial, isento desde 2004, vai tomar uma taxação de 12%. Com isso, segundo ele, o governo pode aumentar o valor do Bolsa Família. E para não deixar um eventual pobre que queira ler muito frustrado por não ter mais acesso a esse produto de magnata chamado livro, quem sabe um futuro programa de doação de obras?

Assim como pé de pobre não tem número, leitura de pobre não precisa ter estilo ou autor. Quer Machado de Assis? Pega um Olavo de Carvalho e não reclama. Sem falar no livro perfeito para dar o tom do programa: “Os Miseráveis” para os miseráveis.

É de se perguntar de onde Guedes tirou que a elite compra livros. A gente abre qualquer revista de decoração e não tem uma estante nas enormes salas de piso frio dos mais abonados. Livros, só nas mesas de centro, volumes vistosos, photobooks, em geral, ali postos como enfeite ou peso de papel.

É uma generalização idiota, eu sei. Tão idiota quanto o ministro achar que pobre não lê. Não compra livro. Troca educação e cultura por uns trocados a mais no Bolsa Família. No Brasil de hoje, pobre deixou de ser uma condição, com as suas circunstâncias, para virar condenação.

Já que o livro pode ser taxado, porque quem compra é a elite, das duas, uma. Ou os pobres passam desde já a consumir jet skis, jatinhos, helicópteros, lanchas e iates, que são livres de tributação, ou o Paulo Guedes começa a taxar os jet skis, helicópteros, lanchas e iates que, se pagassem IPVA, renderiam R$ 5 bilhões ao país —em uma estimativa de 2018. Se ele taxasse as fortunas, aí sim que o Bolsa Família engordava mesmo.

Com o imposto sobre o livro, e seu consequente encarecimento, a diminuição das vendas, a quebradeira de mais livrarias, a falência de mais editoras, o encolhimento do mercado para os autores e novos desempregados para engrossar as estatísticas, pelo menos teremos mais pobres para não consumir nem livro nem produto algum. No fim das contas, não é que o raciocínio do ministro fecha?


Texto de Claudia Tajes, na Folha de São Paulo

sábado, 15 de agosto de 2020

Wim Wenders chega aos 75 anos sendo o amigo por excelência do cinema

 De todos os principais cineastas do chamado novo cinema alemão (estávamos nos anos 1970), o mais próximo da nouvelle vague era, de longe, Wim Wenders. Werner Herzog tinha uma ligação profunda com o romantismo, enquanto a ligação mais profunda de R. W. Fassbiner era com Douglas Sirk, que, embora sendo um produto da fina cultura da República de Weimar, filmou o essencial de sua obra na América.

Wenders, não. Como os jovens críticos franceses dos anos 1950, que se tornariam cineastas logo a seguir, desde cedo manifestou sua admiração pelo cinema americano e seus gêneros. Talvez se sentisse mesmo um pouco estrangeiro na Alemanha Ocidental, como se pode depreender de dois dos oito filmes que o streaming Belas Artes à la Carte começa a exibir, em homenagem aos 75 anos do cineasta. Porém de maneira bem mais sutil do que, digamos, Fassbinder.

Com efeito, o “Falso Movimento” de Wenders tem como princípio os eventos que se passam com um candidato a escritor que se desloca a Bonn por trem e nessa ocasião vai encontrando pessoas bem diferentes entre si. Os deslocamentos e o acaso marcam, igualmente, “Alice nas Cidades”, em que uma mulher confia a jovem Alice a um jornalista durante a espera de um voo. Ele fica com a menina, mas ao voltar ao aeroporto não encontra a mãe, devendo então se ocupar da menina.

Num caso como em outro (restaria ainda nessa linha “No Correr do Tempo”, talvez a obra-prima do cineasta na Alemanha, que não entra nesse pacote), o deslocamento, o se sentir (e ser) estranho aos lugares desempenha um papel central, em que a parceria com o escritor Peter Handke (para quem a ideia do ser estranho é marcante) tem bastante peso. A marca de Wenders nesse momento é a delicadeza com que trabalha o tema.

A atração pelos Estados Unidos e seu cinema o levam a buscar inspiração em 1977 num livro de Patricia Highsmith para “O Amigo Americano”, ainda uma produção europeia, no entanto. Ali, Tom Ripley, papel de Dennis Hopper, traficante de quadros falsos, sugere ao emoldurador Zimmerman, vivido por Bruno Ganz, um negócio diferente do habitual, isto é, um assassinato. O que se explica –isso renderia um bom dinheiro e Zimmerman sofre de uma doença mortal.

Entre o falso e o verdadeiro, Wenders contrabandeou para seu belíssimo filme uma penca de cineastas, desde os americanos Nicholas Ray (em papel importante) e Samuel Fuller, aos europeus Jean Eustache, Daniel Schmid, Gérard Blain, Peter Lilienthal.

Tamanha homenagem ao cinema (e à América) o acabou levando a Hollywood, onde conheceu talvez a maior decepção de sua vida, ao realizar um “Hammett” produzido por Francis Coppola. Isto é, embora fosse também um cineasta, Coppola interferiu aos montes no trabalho do alemão, que o sentiu desfigurado (embora seja um bom filme).

Partiu então para “Paris, Texas”, de 1984, desta vez apoiado na produção francesa de Anatole Dauman, mas sempre nos EUA. Reencontrou já adulta a mesma formidável Nastassia Kinski, a filha de Klaus Kinski que ele lançara aos 13 anos em “Falso Movimento”. Novamente o tema da errância se impõe, com Harry Dean Stanton atravessando um deserto a pé, entre outras. Desta vez o apoio principal foi o texto do americano Sam Shepard (também ótimo ator, mas não aqui).

O certo é que a experiência americana de Wenders pareceu a ele um tanto decepcionante. Talvez até muito decepcionante. Depois de “Paris, Texas”, foram poucos os momentos de brilho verdadeiro em seu trabalho (“Asas do Desejo”, de 1987, se destaca nessa época, bem mais que sua sequência, “Tão Longe, Tão Perto”, que ganhou Cannes e faz parte da série do À la Carte).

O principal de seu trabalho veio de documentários, não raro dedicados ao próprio cinema ou a cineastas, como “Tokyo-Ga”, de 1985, homenagem ao japonês Yasujiro Ozu, e “Buena Vista Social Club”, de 1999. Os dois fazem parte da série apresentada pelo Belas Artes, em que "Buena Vista” se destaca seja por revelar a música do conjunto de Ibrahim Ferrer, quanto pelo que mostra de Cuba, num momento em que ainda sofria enormemente com o fim da União Soviética, que apoiava Fidel Castro e seu regime, e o boicote do feroz inimigo, os EUA.

Entre altos e baixos, Wim Wenders chega aos 75 anos sem a mesma força que marcou os filmes de sua juventude, mas preservando intacta a mitologia que desde então carrega –a de não ser só um cineasta, mas um amigo do cinema. Ou, talvez, seja mais certo dizer o amigo por excelência do cinema.


Texto de Inácio Araújo, na Folha de São Paulo