Acho que sou uma boa pessoa. Não sou fominha no trabalho, gosto de agregar colegas e dividir ideias e méritos. Tinha a maior paciência quando desconhecidos me pediam atenção nas redes sociais —motivo que me levou a parar de olhar as mensagens (eu preciso trabalhar). Colaboro com algumas instituições de caridade. Nunca fui em frente apesar de ter sentido, inúmeras vezes, o desejo de socar o belo nariz de meu companheiro. Choro em filme bonito (cada vez menos, porque fui ficando cascuda e tomo Efexor). Tenho amizades que já duram mais de duas décadas (esse é um bom sinal de que sou bacana).
Mas o que é ser bom? Cumprimentar o porteiro? Acordar de madrugada para medir febre de filho? Não tacar pedra em bicho? Não sentar no colo do marido bonito das minhas amigas? Respeitar que as mesmas amigas não querem ficar peladas pra mim? Não votar em presidente fascista? Ter vontade de morrer enquanto espécie humana sempre que uma criança negra ou pobre é assassinada? Não seria isso tudo o mínimo esperado?
Eu sou legal. De verdade. Sou boa gente. No entanto, tenho recalcado em mim um lodo bastante malcheiroso. O oposto da minha decência (operante, infelizmente, enquanto houver vida) é tão podre quanto o futum do sebinho do buraco da orelha de uma perua bolsominion que não tira as argolinhas douradas nem pra dormir. Sou escrota. E deixa eu te contar uma coisa: você também é.
Eu odeio todos os autores que fazem sucesso. Espumo de raiva de moças mais bonitas e atléticas do que eu. Tenho vontade de colocar fogo na casa de gente que consegue falar bem diante de uma câmera ou de uma plateia. Não suporto minha família. Quero uma casa maior. Quero um chá agora e quero que alguém o traga. Já pensei, no trânsito: “Vai, carrinho de merda, se você quer tanto, pode me ultrapassar”. E tudo isso durou aqueles segundos infinitos e insuportáveis: “Quem é essa pessoa horrível que também me habita?”. E eu apertei meus olhos e balancei a cabeça. E tentei espantar de mim aquilo que, cada vez tenho mais certeza de que é preciso admitir, também sou eu.
E por que estou escrevendo isso? Ainda mais agora que nós, as pessoas boas (e legais e progressistas e democráticas), estamos tão chocadas com o mal “lá fora”. Porque eu acho, no meu misto de ignorante com “até que fala uma ou outra coisa que preste”, que os animais lá fora andam precisando ouvir que bestas também somos. Que insanos e egoístas e autoritários e chucros e errados e racistas também somos. E essa é a única conexão possível. Amigo, você que é um merda, deixa eu te dizer: eu também posso ser! Mas a diferença é que luto diariamente contra. Aceito minha ambivalência, porém jamais permitirei que meu fosso suba até meus olhos e minha boca.
Eu abraço os indivíduos mais inteligentes e bem-sucedidos e cheios de colágeno e que transam pacas e digo: “Caraca, que sucesso, tô meio querendo te matar, mas, ao mesmo tempo, que orgulho, que demais, quero ser sua filha e também seu marido e quero que você morra e às vezes prefiro você a mim mesma, te amo, estou feliz”.
E tudo isso é verdade.
Eu não quero ser boazinha, eu só quero que o fascismo que existe em todos nós (alguns votam a partir dele, outros estão comigo nessa batalha) morra. A luta é dentro da gente. É dentro da gente que, todo dia, o bem tem que vencer o mal.
Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
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