Nos últimos dez anos, cada vez em que fiquei parada no trânsito da Vila Madalena, com aqueles bares abarrotados e a multidão nas calçadas (e no meio da rua, quase em cima da minha cabeça), eu esbravejei contra todos. Inquieta, pensava: “Ai que inferno de cidade, de bairro, de tudo”, querendo chegar logo em casa, querendo ficar logo sozinha e em silêncio no meu escritório, invejando a juventude e o desejo deles. Esquecendo (ou lembrando demais) que já pertenci àquela abundância. Que vontade estranha essa de sair e de se amontoar!
Pois essa noite sonhei que passeava na Vila Madalena, a pé, e via os bares e restaurantes abrindo, as pessoas chegando. E eu chorava no sonho, copiosamente. Acordei com o coração a mil, emocionada. Fazia tempo que não acontecia, mas agora eu estava com desejo de muita gente.
Lembrei de algumas festas que fiz em casa e que foram sucesso de público. Mais de cem pessoas espalhadas pelos poucos e apertados cômodos. Meu banheiro, que eu tenho pavor de que sujem e baguncem, todo revirado, molhado, com aquelas muitas marcas de solas no piso clarinho. Eu sempre me arrependia no meio e começava a mandar os convidados embora. Colocava pijama. Tirava a música. Guardava a comida. Varria, bocejando, os caquinhos das taças quebradas. Olhava com aquela cara de “vai pra casa, querido” para os mais alcoolizados que faziam da cozinha uma insólita pista de dança (achavam a caixa de som que eu tinha escondido e metiam os próprios celulares). Ninguém ia embora. Que saudade!
Hoje eu ficaria tão feliz em ver meu apartamento repleto de amigos. Pode fumar na varanda e fazer minhas velas L’Occitane de cinzeiro. Pode deixar meia quiche mordida em cima do meu teclado. Pode enfiar guardanapo sujo nas frestas do sofá. Pode beijar meus ex-namorados —até porque são metade da festa. Pode bagunçar meus livros e levar alguns (mentira). Acho até que deitaria no chão sujo do banheiro (nem a pau), tamanho o regozijo.
Ano passado levamos Ritinha ao zoológico. O que era aquela fila pra entrar? Minha lombar doendo. Sol na cabeça. Centenas de crianças gritando. Eu nunca desejei tanto sumir. Vontade de voltar no tempo com um megafone e falar para toda aquela gente: “Aê, multidão, abraço coletivo de urso!”.
A escola aqui em frente fechada. Tento puxar da memória o som da aula de educação física (sempre às sete da manhã). Era bem alto e, concluo agora, delicioso (e eu, chatinha, acordava bufando). Confesso que ando melancólica até em relação à PUC, sinto falta do batuque infernal dos alunos ensaiando para o Carnaval. Meia-noite e eles praticamente dentro do meu quarto. Hoje penso como isso tudo só queria dizer que somos muitos e estamos vivos e a rua é nossa. Hoje somos muitos ilhados, outros tantos morrendo, e nem podemos ir à rua gritar a favor da democracia.
Quando essa situação passar, periga eu virar carnavalesca. Comecei a achar aglomerações um hotel cinco estrelas à beira-mar. Queria pegar uma daquelas pontes aéreas lotadas e sentar ao lado de alguém suado. Queria esperar uma hora pra ser atendida no cartório (peguei pesado). Queria combinar almoço com duas amigas e elas aparecerem, cada uma, com mais duas amigas que não conheço. E o encontrinho íntimo viraria uma daquelas reuniões em que todo mundo fala e ninguém ouve. E a gente demoraria horas pra conseguir uma mesa e eu ficaria com hipoglicemia e por causa dela teria uma crise de pânico. E desejaria morrer. Mas agora não. Agora eu faria uma música, um poema, um colar, sei lá. Volta, galera. Eu tô pronta.
Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
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