Li, neste jornal, que você gostaria de voltar a escrever crônicas, mas o estupor da hora impede.
Eu também, Tati, tenho saudade das minhas. E penso que parei de escrevê-las bem antes de você, que ainda reflete sobre a maternidade, os amores tortos, o sexo no casamento, os vizinhos e as eternas neuroses.
Foi a releitura de Rubem Braga que lhe fez notar o desvio. Amo Rubem Braga. Você conhece uma crônica chamada “Defuntos”, sobre a diferença entre os obituários da Alemanha e do Brasil? É das minhas preferidas.
O Millôr me deu uma coletânea com 36 joias do Rubem ilustradas por ele. Guardo o tesouro num lugar de honra da estante. O prefácio é do Millôr, um texto que eu daria tudo para ter escrito. Chama-se “A Última Vez que Vi Rubem Braga”.
Nele, o inventor do frescobol conta dos acenos efusivos que trocava com o cronista, ele no seu estúdio, na General Osório, e o amigo numa cobertura, alguns quarteirões afastada. Em íntima distância, Millôr admirava Rubem ao sol e Rubem via Millôr na prancheta.
Mas “veio o governo Carlos Lacerda, que aprovou a ideia de mudar o gabarito de Ipanema transformando-se o bairro numa favela igual a Copacabana”. E assim, a cidade que ambos conheceram, feita de casas e prédios baixos, foi posta abaixo.
“A exploração imobiliária, liberada para todas as cobiças e todas as monstruosidades arquitetônicas, começou a rodear o edifício de Rubem Braga com massas gigantescas de concreto e aço, construções as mais estranhas, sem ar nem luz —atentados que ninguém parece ver, e contra os quais, aparentemente, ninguém pode. E, pouco a pouco, Rubem Braga foi desaparecendo de minha vista, tragado pela Nova York, oculto pela Canadá, emparedado pela Sergen, sepultado pela Gomes de Almeida Fernandes.”
Um dia, um desses caixotes de cimento horrendo barrou, em definitivo, a comunicação do Millôr com o parceiro. Foi a última vez que ele viu Rubem Braga. É um relato estupendo sobre a amizade, a convivência, a catástrofe urbanística e a mudança inexorável das coisas. Um libelo contra o mau gosto, além de um epitáfio da geração dos dois, insinuado no título. E tudo sem perder a dimensão humana, dos sentimentos, ou se valer de denúncias, protestos e estatísticas enfadonhas.
O problema é que o mundo perdeu a poesia, Tati. O humor, a inteligência e a poesia. Estamos todos como a tartaruga que cai de pernas para o ar e vive à espera de alguém que a desvire. Passo os dias quarentenada. À noitinha, assisto ao noticiário das inomináveis tragédias, afundo na lista de óbitos, medro diante das improbidades e conspirações mais torpes e, por fim, coro ao som de palavrões chulos.
A monstruosidade impera travestida de decência. Quando me sento para escrever, só vem o assombro com a última meleca misturada com cachorro-quente, o susto com a carreata armada, a indignação com as maracutaias da saúde e o pânico com aquela reunião ministerial.
Quem virá nos resgatar?
Antônio Prata é de lavar a alma, Gregorio não se intimida, você é o melhor espelho que se pode ter, mas somos todos do jardim de infância, se comparados ao Rubem e ao Millôr. A geração deles se criou num país que ainda existia. Nota-se, na elegância da pena da dupla, ecos da ironia do Machado, da melancolia do Bandeira. Mas não tem Machado e nem Bandeira, não tem Suassuna, Rosa, Drummond, Graciliano, Nelson ou Clarice nesse buraco em que nos metemos.
Ontem, fui dormir certa de que rumamos para a Venezuela. Talvez aconteça aqui. O dinheiro grosso não se importa de abrir mão da educação, da cultura, da ciência e da justiça.
Celso de Mello se insurge contra a “gravíssima aleivosia” do “discurso contumelioso” do louco do Weintraub. Não defendo que os magistrados corrompam o seu excelentíssimo português, mas o decano precisa de legenda para ser compreendido; ao contrário dos porras, foda-ses, trozobas, hemorroidas, bostas e estrumes do capitão.
“Atentados que ninguém parece ver e contra os quais, aparentemente, ninguém pode”, volto ao Millôr. E, pouco a pouco, o Brasil vai desaparecendo da minha vista, tragado pela América do Olavo, oculto pela Estátua da Liberdade da Havan, emparedado pelo velho centrão, sepultado pelas fake news.
Eu também gostaria de escrever uma crônica, mas diante dos acontecimentos, o que resta é a inutilidade da análise. Os brioches da Maria Antonieta.
Nos vemos na guilhotina.
Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo.
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