– Que quer fazer agora?
– Viver, ora.
– O que é viver?
– Seguir em frente.
Sonhei este diálogo muitas vezes. Dormia, acordava, dormia de novo. A conversa voltava com interlocutores diferentes. Eu me encolhia ou tentava ver o rosto das pessoas que falavam comigo nesses sonhos. Uma mulher parava na minha frente e me mandava levantar e lutar.
– Tem muito caminho pela frente – dizia.
– Eu sei. Quero caminhar.
– Então, caminha.
Confesso que eu nunca tinha pensado na vida sob certos ângulos. As minhas reflexões eram sempre abstratas. Vida era um termo vago. Uma metáfora de projetos, de metas, de planos ou de ambições genéricas. Não era uma coisa, digamos, biológica, concreta, passível de extinção de um minuto para outro. Isso só aconteceria, imaginava eu, a partir de certa linha de corte. O problema é que eu estava, aos 58 anos de idade, fora da linha de corte, os famosos 60 anos, e tão perto dela. Pensava na vida como um programa de atividades, um calendário a ser cumprido, uma extensa agenda a ser consultada a cada dia para não faltar. Vida era uma palavra que eu lia em romances, em livros de filosofia e em obras de psicologia. Viver era não pensar no significado da vida, salvo de maneira passageira em alguns momentos de desaceleração ou de tédio.
– Sabe bem o que é viver?
– Achava que sabia.
– O que mudou?
– Tudo.
Essa conversa nos meus sonhos intranquilos ia e via como uma sequência de um capítulo de novela. Eu queria interrompê-la, dormir profundamente, não pensar em coisa alguma, muito menos na vida, mergulhar numa paz feita de nuvens e de vozes queridas cantando alguma coisa. Não era assim. Decidi ficar acordado para apagar esse sonho que me angustiava. Não consegui. Fiquei trocando mensagens com um amigo, acordando, dormindo e sonhando com situações que nunca mudavam:
– Por que quer viver?
– Amo a vida.
– Acha que basta?
Às vezes, eu pensava em tocar a campainha, pedir socorro. O que diria à enfermeira? Pediria que me salvasse de um sonho ruim? Ou que me ajudasse a encontrar as respostas que me requisitavam a cada capítulo? A tarde escoava lentamente emitindo uma luz glauca. Quando eu imaginava terem passado três horas, haviam escorrido sete ou oito minutos. Na televisão, ligada em jogos antigos apenas para fazer barulho, o grito de gol soava falso ou sem qualquer sentido. Tudo era repetição. Um homem velho, no sonho, me cutucava, sorria e me mostrava uma estrada:
– Ainda falta muito, vai. Anda.
Eu acordava. Tentava manter os olhos abertos de qualquer jeito para não voltar a sonhar. O sono me arrastava sem demora. Amigos se sucediam fazendo a mesma pergunta com tons de voz bem diferentes:
– Viveste como devia até agora?
Eu não sabia o que dizer. Podia admitir os tantos erros cometidos ao longo dos anos, pedir desculpas, explicar que a gente só percebe que errou quando já passou, garantir que fiz tudo com honestidade e amor.
– Te arrependes de alguma coisa?
Eu não queria ser melodramático, tentava me acordar para não parecer ridículo, esfregava os olhos para tirar a areia que os cobria. Um minuto depois de ter olhado o relógio e sorvido mais um segundo de luz opaca, já estava sonhando de novo, diante das mesmas pessoas, ouvindo as mesmas perguntas, hesitando nas respostas, querendo gritar:
– Quero viver!
– Vai viver.
– Não tenho certeza.
Não estava mal. Os médicos me tranquilizavam. Sentia medo. Quem poderia saber, de fato, como o vírus agiria? Lembrei do título de um romance de Jean-Paul Sartre, “Com a morte na alma”, e ri. Sim, ri. Era grandiloquente demais. Já estava sonhando outra vez. A mulher da primeira cena voltava, de cabelos muitos brancos, e me questionava:
– Que vai fazer quando sair daqui?
– Viver.
– Vai mudar alguma coisa?
Havia tanto a mudar. Eu não estava fazendo nada errado, só não mirava nas coisas essenciais. Havia situações quase engraçadas:
– Posso lhe abraçar?
– Esperemos mais um ano.
Foi uma tarde longa. Quando a luz passou a declinar, alguns jogos passados, comecei a acordar. O sonho me libertou aos poucos. Ficaram as perguntas ecoando na minha cabeça e uma única resposta cintilando:
– Vida que segue.
Texto de Juremir Machado da Silva, em seu blogue no Correio do Povo.
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