Quero contar uma história.
Melhor que não seja um drama, os jornais já noticiam tragédias demais.
Melhor que não seja uma comédia, o leitor pode achar que é insensibilidade da minha parte fazer piadas em um momento tão delicado. Rir, só se for de nervoso ou desespero.
Melhor que não seja uma história de amor, já que o esperado primeiro beijo do casal seria uma afronta às recomendações da Organização Mundial da Saúde.
Melhor que não seja um suspense, o Brasil já é um filme de terror, desabafou Sérgio Sant’Anna em um de seus últimos posts nas redes sociais, e me arrisco a complementar que a verdadeira identidade do inimigo já não é um mistério para 70% do público.
Melhor que não seja ficção, impossível competir com a realidade. Não sei quem está escrevendo esse roteiro, e não sei se gostaria de deitá-lo na porrada ou perguntar de onde ele tira tantos pontos de virada.
Melhor que não seja autobiográfico, até porque meus dias, que já não eram lá muito interessantes, agora têm sido sempre iguais. Ninguém precisa de um remake de “Feitiço do Tempo” a esta altura do campeonato.
Melhor que não seja no passado, aquele mundo já não faz mais sentido. A hora do rush, um baile da terceira idade, um baseado passando de boca em boca, parecem ritos distantes, de uma sociedade que caducou.
Melhor que não seja no presente, o presente já está presente demais, sufocando nossos desejos, planos e sonhos. “O senhor teria alguns minutos para ouvir uma história sobre a pandemia?” “Não, obrigado”, diria o leitor, batendo a porta na minha cara.
Melhor que não seja no futuro, ninguém sabe ao certo quando isso tudo vai acabar, que dirá como. Não tenho bola de cristal para prever o pós-pandemia, ou descrever o novo normal, esse monstro de muitas cabeças. Cabe a nós imaginar um novo mundo, mas devo estar com bloqueio criativo ou, talvez, o vírus tenha me travado.
E mesmo assim, apesar de tudo, ainda quero contar uma história.
Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário