O conde Liev Tolstói (1828-1910) é conhecido pela sua dura crítica à civilização. Mas, antes de irmos à sua crítica social, lembremos que ele quase se matou.
Tolstói sofreu de depressão parte da sua vida, o que revela que pessoas portadoras desse quadro podem desenvolver grandes obras (e ter uma vida rica), exemplificando um daqueles casos que Freud chamaria de sublimação bem-sucedida: quando você faz do seu sintoma algo construtivo.
Tolstói não se sentia muito bem na vida social de salão, muito comum na aristocracia russa de sua época. Indicativo disso era o fato de que preferia viver na sua propriedade rural, onde nascera, Iasnaia Poliana, à vida urbana. E quando foi obrigado pela mulher a se mudar para a cidade, preferiu a provinciana Moscou à cosmopolita e capital do império, São Petersburgo. E em Moscou comprou uma casa num bairro proletário, apesar de ser uma excelente propriedade. Tolstói era um homem rico.
Em 1882, Tolstói lançou “Uma Confissão”, publicado aqui pela editora Mundo Cristão. Uma pérola. Neste breve relato de sua depressão, Tolstói vai das dificuldades do apetite e do sono à falta de libido e ao desejo de se matar, passando por discussões com Schopenhauer e seu pessimismo niilista em filosofia, chegando às duras críticas ao cristianismo morto, na sua opinião, da Igreja Ortodoxa Russa, apoiadora da monarquia autocrática czarista.
O grande russo não se matou, graças a Deus. Sua “cura” se deu quando cunhou sua peculiar concepção de cristianismo radicalmente anti-institucional, associado a uma certa idealização da vida do camponês russo, os mujiques, que ele bem conhecia, uma vez que era proprietário de terras e, em alguma medida, dos servos que nelas viviam. Chegou mesmo a criar uma escola para os filhos dos servos e se dedicou a uma vida próxima ao estoicismo, permeada por um culto à natureza e à vida simples, ainda mais arredio ao mundo urbano e civilizado.
Enfim, se curou, não só pela continuidade da sua obra, mas pelo vínculo com a terra e seus servos, num cotidiano muito próximo deles. É claro, Tolstói não era um santinho, teve amantes entre as servas e, provavelmente, filhos com algumas delas. Estamos longe da percepção puritana e infantil que forma o mundo da cultura hoje, que sonha com super-heróis e super-heroínas mortos para o Eros.
E sua crítica à civilização? A descrição da repressão do desejo feminino em Tolstói é muito conhecida em obras como “Anna Kariênina”. Menos conhecidas, talvez, sejam as suas obras em que o grande russo descreve os modos de desespero dos homens dentro dessa mesma civilização. O sofrimento do homem é distinto do da mulher, mas não “menor”. Apesar, é claro, que ao homem casado é permitido continuar a ter amantes, e à mulher casada, não. O esmagamento do homem se dá de outros modos.
Sabe-se que Tolstói via o casamento como uma ferramenta social de destruição da vida humana, por mergulhar os casais num tédio profundo. Aparentemente, sua utopia ao final da vida era uma espécie de vida fraterna e rural entre homens e mulheres, sem desejos carnais violentos, regados a comida vegetariana (ele tornou-se vegetariano). Não nos enganemos: Tolstói virou um niilista contra a vida civilizada conhecida e via com bons olhos uma espécie de socialismo cristão radical.
Em novelas curtas, como “A Morte de Ivan Ilitch” e “Sonata Kreutzer”, Tolstói descreve a destruição de dois maridos pelo casamento e pela ambição masculina materialista.
O primeiro, que chega à morte “por rim móvel” (Tolstói debochava da medicina de sua época), vê o início da felicidade da sua mulher em se livrar do seu marido combalido, depois de ele se dedicar duramente a realizar todos os desejos da mulher continuamente entediada.
O segundo descreve o desespero do marido tentando evitar que sua mulher bela e jovem o traísse com homens jovens, uma vez que ele, o marido, se desgastara tentando “dar tudo do bom e do melhor” para sua família.
Enfim, a depressão e o tédio são doenças que nos invadem de modo invisível e podem ser mortais e contagiosas.
Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo.
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