Eram seis e meia da manhã. As primeiras luzes do dia insinuavam-se timidamente. Ele saiu para caminhar depois de um longo tempo de isolamento. Deu a volta na quadra com uma lentidão impressionante. Parecia afundar sob o peso dos pensamentos. Carregava no coração a pergunta de Zavalita, personagem de Mario Vargas Llosa em “Conversa na catedral”: em que momento o Peru se f...errou? Claro que no lugar do Peru colocava o Brasil. Teria sido em 1979 quando aceitou uma anistia que perdoou torturadores e não fez o necessário balanço da ditadura? Seria agora com a pregação explícita de golpe de Eduardo Bolsonaro?
Teria sido em 1822 quando declarou uma independência que manteve a nação atrelada a um português? Em 1831, quando proibiu o tráfico de escravos e não cumpriu? Em 1888, na abolição, quando libertou escravizados e não se preocupou em incluí-los na sociedade? Em 1937, quando mergulhou na ditadura do Estado Novo? Em 1954, quando empurrou Getúlio para o suicídio? Em 1964, quando, com apoio da imprensa, derrubou Jango? Em 1968, no AI-5, quando perdeu toda capacidade de dissimulação? Respirou fundo. Encheu os pulmões de ar fresco. Inspirou a manhã como quem tenta acreditar no futuro. Quando foi que o Brasil despencou? Quando elegeu e derrubou Collor? Quando deixou FHC manobrar para ter a sua reeleição? Quando se entregou ao PT e ao lulismo?
Olhou o cartaz no pátio do hospital indicando o setor de atendimento a pacientes com suspeita de coronavírus. Como foi possível chegar aonde chegamos, ouviu-se quase balbuciar. Em que momento passamos a ter gente negando a ciência, o conhecimento, a razão? Por que não conseguimos eleger um presidente moderado, capaz de seguir as recomendações dos médicos em questões médicas e de não participar de manifestações contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal? Como foi que chegamos a ter um ministro das Relações Exteriores que vê no coronavírus um agente do comunismo internacional e diz isso sem constrangimento nem consequências? Quando foi que o Brasil se ferrou? Quando, de novo, cedeu à tentação autoritária pelo voto?
Dobrou a esquina. Reviu um naco da cidade. Emocionou-se. Como foi possível chegar a uma reunião governamental na qual uma ministra pede a prisão de governadores e prefeitos e o ministro da Educação reclama o encarceramento dos magistrados do STF? Onde falhamos? O que deu errado? O justo combate à corrupção terá produzido um remédio letal? Pensou nas conversas da deputada Carla Zambelli com o ainda ministro Sérgio Moro, oferecendo-lhe uma vaga no Supremo para que aceitasse um chefe da Polícia Federal amigo da família do presidente da República. Pensou em Moro respondendo: “Não estou à venda”. Pensou em tudo o que veio depois: Moro demitindo-se, o chefe da Polícia Federal trocado, o superintendente da PF, no Rio de Janeiro, objeto de controvérsias entre Bolsonaro e Moro, também mudado. Pensou em tudo isso e caminhou mais.
Por que o Brasil não soube construir uma democracia sólida? A pergunta surgiu como um golpe de vento. A seguinte foi só uma continuação: estamos a caminho de um novo impeachment de presidente? Ou de um autogolpe para, como quer Eduardo Bolsonaro, "zerar o jogo" com uma intervenção militar?
Texto de Juremir Machado da Silva, em seu blogue no Correio do Povo.
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