Nelson Rodrigues dizia que a busca por ser racional era uma dolorosa ascese, um esforço, semelhante à busca pela santidade.
Em dias como esses, em meio a tagarelice que se abateu sobre a pandemia nas redes, na mídia, nos cientistas, nos políticos, a busca por alguma gota de racionalidade virou uma dura ascese que beira o cultivo do silêncio como saída para um mínimo de sanidade. O silêncio não é, necessariamente, mudez. E a sanidade, por sua vez, pode ser a escolha de uma outra linguagem ou perspectiva no olhar.
Santidade é um tema que precisamos lembrar nestes dias em que vivemos. Aliás, devemos sempre lembrar, mas na agonia aguda, ele é sempre mais essencial.
O teólogo Hans Urs von Balthasar (1905-1988), sacerdote e teólogo suíço, escreveu um livro chamado (numa tradução do alemão) irmãs no espírito: Tereza de Lisieux e Elizabeth de Dijon, sem edição no Brasil, que eu saiba. Trata-se de uma peça importante nos estudos do que podemos chamar de fenomenologia da graça, como ele mesmo diz, ou fenomenologia da santidade. Segundo o autor, existem dois tipos básicos de santidade.
Um primeiro é a santidade que brota do solo da comunidade e se ergue em direção a Deus, como que pedindo seu reconhecimento. Esse tipo é o mais comum, mas esse “comum” nada tem de mais fácil, apenas se trata de mais frequente. Aliás, essa frequência tem a ver justamente com a necessidade que a humanidade tem de buscar o reconhecimento de Deus pelo seu esforço contínuo no dia a dia.
Esse santo ou santa tem como traço a força de vontade de realizar o bem buscando a semelhança com Deus. Na Bíblia hebraica, Deus diz que devemos ser santos como Ele é. Nesse sentido, a santidade horizontal, como diz Von Balthasar, às vezes, é uma santidade que surge como fruto do livre arbítrio humano tentando se aproximar de Deus.
Não por vaidade de ser “semelhante a Deus”, porque ninguém chega a isso, mas movida pela consciência típica da santidade que é a dolorosa ascese na busca de superar as fraquezas humanas.
Entendo que o santo é aquele que sabe que quanto mais alguém se acha próximo de Deus, mais longe está, e quanto mais se sabe longe de Deus, mais perto está. Portanto, essa semelhança passa, necessariamente, pela humildade de se reconhecer dessemelhante a Deus. Por isso, o orgulho moral de si mesmo (erro de Jó) é um traço da não santidade.
Esse tipo de santidade é contínua, repetitiva no seu esforço, muitas vezes invisível ao olhar superficial humano. Cotidiana no seu cenário, não tem um roteiro grandiloquente.
O segundo tipo de santidade, segundo Von Balthasar, é muito mais raro. Podemos chamá-la, seguindo o teólogo, de vertical. Esta é fruto da escolha que Deus faz por uma pessoa, à revelia da sua vontade, o que faz dela, de certa forma, mais dramática no seu roteiro de realização.
O segundo tipo de santidade seria a dos gigantes da hagiografia geral do catolicismo. Hagiografia é uma disciplina, hoje rara, que narra a vida dos santos.
Segundo o teólogo, esse segundo tipo pode contar, inclusive, com a resistência por parte do eleito. Essa resistência pode ser resultado do sentimento de invasão da sua vida por Deus, uma sensação comum em muitos heróis bíblicos. Deus costuma invadir a vida daqueles que ele escolhe para realizar seus projetos.
Mas, como dizem, a graça nunca ofende a natureza. Nesse sentido, essa máxima quer dizer que com o tempo o eleito percebe sua missão (ou carisma) e, às vezes lentamente, vai entendendo a razão de Deus tê-lo escolhido, e sua vida subjetiva se acalma diante do inevitável. Mas, o transtorno, diríamos numa linguagem psicológica, não é menor. Passar a viver acompanhado por Deus, sem ter escolhido tal fato, já é parte do seu carisma de santidade.
Isto é o que Von Bathasar quer dizer pela vida invadida pelo sobrenatural que transforma a natureza em direção ao divino.
Nestes dias, precisamos de todos os santos possíveis. Para além dos dois tipos de santidade descritas pelo teólogo, precisamos mesmo de todas as pequenas santidades que estão a nossa volta.
Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo.
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