Madame Zenaide, lembraria Aldir Blanc em uma crônica, era a pessoa mais misteriosa da rua dos Artistas. Era cartomante, quiromante, ocultista. Muitos se benziam diante de sua casa, mas alguns iam se consultar.
A história é que Lindauro, um desses, suou frio o tempo inteiro ao falar com a pitonisa. Ao chegar ao bar, contou para todos: “O negócio é fogo! Tu fica com a boca tão seca que depois tem que tomar umas seis cervejas”.
Morto há quase um mês, Blanc inscreveu seu nome na tradição da crônica carioca com histórias assim. A vidente é só um nome na galeria de personagens que ele tirava da própria vida.
Quem conheceu o compositor de alguns dos clássicos da canção brasileira, entre eles “O Bêbado e a Equilibrista” e “Dois pra Lá, Dois pra Cá”, diz que ler essas crônicas é como ouvir a voz dele, e também ocorria o contrário —porque ele falava exatamente do jeito que escrevia.
Prova disso é uma entrevista ainda inédita com Blanc, feita pelo diretor Marcus Fernando e o jornalista Hugo Sukman para um documentário sobre o artista —sem recursos para ir adiante, o filme ainda está em produção e não tem data para ser finalizado.
Os dois gravaram duas longas conversas com ele no ano passado, algo raro, dada a notória resistência do compositor em conceder entrevistas. Nelas, Blanc contou histórias da sua vida, da experiência com a medicina à censura à primeira versão de “O Mestre-Sala dos Mares” —e a voz que surge dessas conversas é a do velho cronista. Aqui, você lê algumas dessas histórias.
AQUELA MERDA MATA MESMO
Como ex-médico, eu sei da hora que dá merda. Eu conheço a hora em que está tudo bem e alguém diz “peraí, chama o carrinho”. “Foi parada cardíaca? Que merda é essa?”
Eu conheço, eu vivi essa hora em hospitais. Num pronto-socorro em Santa Cruz, tinha uma ambulância só. Quando tinha desastre na estrada de Sepetiba, você botava oito na ambulância, arrebentados, um por cima do outro e mandava o cara abrir a sirene e tocar rápido.
Um cirurgião só para aquilo tudo, que matava rato com [revólver] 22 à noite na garagem do hospital e se suicidou um pouco depois. Essa é a realidade desse tipo de coisa. O clínico que morreu de infarto fulminante aos 40 anos. Eu sei porque que ele morreu: porque aquela merda lá mata mesmo.
Numa das primeiras experiências no terceiro ano, um sextanista que eu adorava, que tinha o cabelo todo espetado, era completamente biruta, agressivo, chamou a gente para o leito de uma criança e disse: “Ele está internado aqui, embora a gente nem esteja seguindo o protocolo. Ele não podia estar internado aqui porque está com esquistossomose. Está difícil... A gente está tentando salvar a vida dele, porque os órgãos internos estão muito comprometidos ainda”.
As aulas de medicina eram tudo bofetada! Minha primeira entrada no Instituto Médico Legal foi com um cara risonho, um menino na mesa.
“Será que os senhores gostariam de fazer algum tipo de diagnóstico preliminar?”
Algum metido lá: “É evidente que ele está todo arrebentado, foi algum tipo de trauma violento”.
O professor, aplaudindo: “Puxa, parabéns! O senhor vê um morto todo arrebentado e chega a essa conclusão... O que caiu em cima dele? Uma bigorna? O que vocês me dizem?”.
Depois de esculhambar todo mundo, ele disse: “Isso foi um atropelamento por um caminhão, numa estrada. Alguém quer fazer mais algum comentário ou é todo mundo cego? O que os senhores não repararam é que ele tentou correr do caminhão mas não conseguiu porque ele tinha paralisia infantil. Uma das pernas já era atrofiada antes de o caminhão passar em cima dele. Até logo! Obrigado a todos”. E isso era uma aula de medicina.
O ÁCIDO SULFÚRICO DIÁRIO
Eu estou fazendo a letra de “Altos e Baixos”, ainda morando na avenida Maracanã e bebendo um pouco acima do ácido sulfúrico diário... Eu estou letrando aquilo, e a manhã está raiando.
Aí, eu termino a letra, escuto um estrondo, vou na janela e vejo um táxi enfiado num poste, pegando fogo, um tremendo fogaréu. Olho aquilo —eu cheio de vodca até a medula— e digo: “Vou ter que começar a maneirar, começou o delírio”.
A letra acabada, eu assino, penso que amanhã eu canto para ela [Sueli Costa, a parceira] e vou dormir. Estou lá escornado, quando chega uma hora da tarde, mais ou menos, batem na porta. Levanto meio zureta, vou até a porta, tem uma senhora que eu não conheço. Abro a porta e ela diz assim: “Doutor Aldir!”
“Não exerço mais a profissão, mas qual é o problema?”
“A minha filha está passando muito mal no sexto andar.”
“Eu vou lá, pode deixar, me dá cinco minutos.”
Eu fecho a porta, lavo a cara, escovo os dentes, tomo uma cerveja, tomo um sossega-leão de vodca, bochecho aquilo tudo, me visto, ponho o desodorante e vou ao sexto andar com aparelho de pressão e estetoscópio. Aí tem uma moça caída na cama.
“Oi! O que é que houve?”
Converso um pouco, ela começa a melhorar, eu vejo que o pulso está normal, que a ausculta é normal, que a pressão está normal, eu digo: “Olha, você teve algum problema emocional. Se você quiser falar sobre isso, estou à sua disposição. Mas, se é para lhe tranquilizar, tudo isso vai passar. Qualquer coisa, eu estou aqui no oitavo, onde sua mãe me chamou, então fique tranquila”.
Aí a mãe atrás de mim diz: “Acho que desde que aquele táxi pegou fogo ela ficou assim!”.
Eu disse: “Graças a Deus! Então não era delírio! Pegou fogo mesmo!”.
Eu fiquei numa felicidade absurda. Porra, teve um táxi que se estabacou, pegou fogo! Eu vi essa merda mesmo! Eu não estou maluco! Eu ainda não estou delirando! Foi lindo.
E daí saiu “foi quem sabe, esse disco, esse risco de sombra em teus cílio”, gravada imortalmente por Elis Regina.
O NEGRO ISSO, O NEGRO AQUILO
O João [Bosco] no início da carreira era da [gravadora] RCA. Havia um funcionário lá, muito malandro, que levava de presente dezenas de LPs para aqueles caras da censura. Um dia, ele encosta na gente e diz assim: “Eles estão pedindo a tua ida lá pra falar sobre ‘Almirante Negro’”.
Aí eu fui ao Palácio do Catete, para onde tinha se mudado a censura, procurei o setor.
Vi uma coisa cômica. Logo na entrada, tinha três escrivaninhas iguais, com três sujeitos já bem idosos, de cabelo branco. Aí eu sentei na primeira escrivaninha, onde mandaram eu sentar, o cara me fez algumas perguntas e disse: “Passa para a segunda escrivaninha”.
O cara me fez exatamente as mesmas perguntas e disse: “Passa para a terceira escrivaninha”.
Outra vez a mesma merda, e o cara falou “pode entrar”. Ou seja, aquilo era um tremendo cabide para policial aposentado ou qualquer coisa assim.
Eu entro —aí é que eu acho um negócio revoltante—, vem um cara de paletó e gravata, com o paletó aberto com o coldre aparecendo, andando de um lado para o outro. A coronha do revólver só faltava passar no meu nariz.
O cara de repente diz para mim assim: “Mas, então... Vocês estão errando o foco. Vocês estão mudando a letra, insistindo, insistindo e o problema é ó...”.
E esfregava o dedo na pele do braço. Eu não entendi. “Toda hora esse troço na letra aí, o negro isso, o negro aquilo.”
Isso me deu um mal-estar tremendo. E eu fui salvo por um escândalo. Um cara na sala ao lado começa a gritar que tinham que matar o Ney Matogrosso. Porque ele tinha entrado em casa e encontrado um neto dançando com uns panos imitando o Ney Matogrosso.
Eu nunca consegui saber se aquilo era verdade ou se era um processo de intimidação para sobrar para mim, porque era meio teatral demais, meio armado demais.
Aí o cara volta, fica parado assim, abre o paletó, coloca a coronha quase dentro da minha narina e diz: “Acho que deu para entender, né, cara? Esse negócio do negro tá pegando!”.
Aí eu saio de lá zonzo, tomo uma cerveja a um quilômetro dali, falo com o João sobre esse troço e a gente transforma em “O Mestre-Sala dos Mares”.
Reportagem de Maurício Meireles, na Folha de São Paulo.
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