terça-feira, 30 de junho de 2020

Gostaria de cancelar 2020, pois eu só queria um ano, não um moedor de sonhos

“Central de cancelamento, com quem eu falo?”
“Até que enfim, fiquei uma hora esperando na linha.”
“Desculpe, senhora, a demanda do nosso setor cresceu muito e estamos fazendo o possível. Em que posso ajudar?”
“Eu gostaria de cancelar o ano de 2020.”
“Qual seria o motivo?”
“Preciso mesmo responder?”
“Para dar prosseguimento à sua solicitação, eu preciso estar preenchendo o formulário com o motivo do cancelamento, senhora.”
“Tem que escolher um só?”
“Fica a critério da senhora, senhora.”
“Bom, desde janeiro esse ano já vinha dando problema, mas agora parou de funcionar de vez.”
“A senhora poderia ser mais específica?”
“No dia 31 de dezembro de 2019 eu vesti branco, usei uma calcinha nova, comi lentilha, pulei sete ondinhas e pedi um feliz ano novo, certo? O jingle do produto dizia o quê? ‘Muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender.’ E o que eu recebi?”
“O produto não correspondeu às suas expectativas?”
“Eu só queria um ano novo, não um moedor de sonhos.”
“A senhora poderia exemplificar alguns desses defeitos?”
“É só abrir o jornal. O último foi essa nuvem de gafanhoto, mas tem um monte, dia desses fez 38 graus na Sibéria, quer dizer, tem alguma coisa errada.”
“Só um minutinho senhora, vou estar verificando a sua solicitação...”
“OK.”
“Infelizmente não poderemos estar realizando o cancelamento solicitado.”
“Por quê?!”
“Estamos com um probleminha de superlotação no nosso banco de cancelados.”
“Como assim?”
“A cultura do cancelamento saiu do controle, senhora. Começou com pessoas, depois marcas, e a tendência agora é o cancelamento de eventos. Cancelar um ano, mesmo que um ano pela metade, vai sobrecarregar o sistema. Seria mais fácil cancelar o Drauzio Varella, entende?”
“Quer dizer que você não pode me ajudar?”
“Infelizmente não. A senhora pode abrir uma conta no Twitter e fazer um exposed de 2020.”
“Um o quê?”
“Um exposed é uma exposição de dados que destroem a reputação de uma pessoa, levando ao seu cancelamento.”
“Parece muito complicado.”
“Que nada, o cancelamento online é muito mais fácil, o tribunal da internet não tem burocracia nenhuma. Boa sorte e tenha um bom dia.”

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

terça-feira, 23 de junho de 2020

Querido cometa, em 2020, o senhor será muito bem recebido por aqui

Não nos conhecemos pessoalmente, sou apenas mais uma de seus fãs, que encontrou no seu trabalho uma imensa fonte de esperança.
Sei que você deve receber muitos pedidos vindos do nosso planeta. O ser humano não pode ver uma estrela cadente que faz uma fezinha. Imagino que nossas solicitações sejam difíceis de atender —felicidade, riqueza, amores impossíveis etc.
Pode ficar tranquilo, pois o que venho pedir por meio desta carta, com todo o carinho e respeito à sua trajetória, é algo muito simples.
O momento pode não ser muito propício para viagens turísticas, mas gostaria que o senhor nos fizesse uma visita. De preferência, o mais rápido possível —quanto maior a velocidade, maior o impacto.
Não precisa avisar com antecedência, até porque um aviso não seria levado a sério por parte da população.
Muitos diriam que se trata apenas de um “cometinha” ou uma conspiração comunista para desestabilizar certos líderes dos quais o senhor, por sorte, nunca ouviu falar. Minha sugestão é que o senhor responda esse povo ignorante na mesma moeda e simplesmente os ignore.
Espero que não tenha se sentido ofendido pelo filme “Armageddon”, no qual um asteroide em rota de colisão com a Terra é representado como o vilão da história, e acaba sendo destruído pelo Bruce Willis ao som de uma trilha tocante do Aerosmith. O filme é de 1998, os tempos eram outros, e ainda víamos o senhor como uma ameaça. Como éramos ingênuos...
Pode ter certeza que, em 2020, o senhor será muito bem recebido por aqui. Duvido que os dinossauros estivessem tão ansiosos pela sua chegada quanto nós, humanos. Por acaso eles também emplacaram a hashtag #VemMeteoro? Por acaso eles também destruíram a camada de ozônio para eliminar burocracias na alfândega? Pois bem.
Longe de mim querer fazer fofoca, mas tem uma galera aqui achando que pode fazer o seu trabalho.
Pandemia, vulcão, vespa assassina, Trump, Bolsonaro. Seria muito legal se o senhor pudesse ver com seus próprios olhos e mostrar para eles um pouco dos seus talentos apocalípticos. Só não repara a bagunça, tá?

Crônica de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 19 de junho de 2020

A chegada do cometa

A coluna de hoje não é recomendada para leitura durante refeições. Seu assunto é o ânus de Jair Bolsonaro e os desarranjos de seu governo. Desculpe o calão intestinal, mas faz parte da linguagem com que, pela primeira vez no Brasil, um presidente da República passou a se expressar.
O leitor se lembra. Pouco depois de sua posse, Bolsonaro confessou ter feito xixi na cama até os cinco anos de idade. Por algum motivo, disse também que o brasileiro não sabia lavar o pênis com água e sabão e, num arroubo de modéstia, declarou para uma plateia extasiada que continuava “na ativa e sem aditivos”.
Dias depois, no Carnaval, protagonizou o extraordinário episódio do golden shower, postando um vídeo em que dois rapazes se urinavam. Com essa fixação fálica e urinária de Bolsonaro, só a diplomacia explica que os outros chefes de Estado continuassem lhe apertando a mão.
Mas Bolsonaro, para quem “porra” é vírgula, evoluiu —levou seu governo à fase fecal e anal. Na inesquecível reunião ministerial de abril, chamou dois governadores e um prefeito de “bostas” e, referindo-se aos processos movidos pelo STF, alertou: “O que esses caras querem é a nossa hemorroida!”.
Como não se sabia que o presidente sofria de dilatação venosa em região tão delicada, ficou ainda mais dolorosa a recente afronta a ele dirigida por seu mentor Olavo de Carvalho, que, defecando para uma condecoração com que Bolsonaro o distinguira, mandou-o “enfiar a condecoração no *”. Foi a ordem mais chocante dirigida até hoje a um presidente no Brasil e, pelo silêncio presidencial como resposta, não se sabe se foi cumprida.
Agora, com a prisão de Fabrício Queiroz, volta à tona a desesperada advertência do velho amigo ao chefe que parecia tê-lo abandonado: “O Ministério Público tem uma pica do tamanho de um cometa pra enterrar na gente!”
Decididamente, este é um governo para entrar nos anais.

Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Weintraub na terra dos oxímoros

“Com Weintraub sob pressão, Bolsonaro busca saída honrosa para ministro da Educação”, noticiou a Folha na segunda-feira (15). O que saltou da tela, quando li aquilo, foi o oxímoro fulgurante produzido pelo encontro de duas ideias: “Weintraub” e “saída honrosa”.
Oxímoro é aquela figura de retórica que promove (a definição é do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa) a “aproximação de duas palavras ou de duas expressões contraditórias, que se excluem mutuamente de um ponto de vista puramente lógico”.
A própria palavra traz um oxímoro embutido. O grego “oxúmoron”, que nos chegou por tabela com o latim “oxymorus”, junta a noção de “agudo” com a de “tolo, louco”.
O oxímoro não é um paradoxo qualquer. É aquele usado com arte para expressar o que é de difícil expressão. Num bom espécime, o disparate sempre ilumina um aspecto profundo do que nomeia.
Não foi preciso esperar o momento da “saída honrosa” para transportar nosso infausto personagem à terra dos oxímoros. “Weintraub, ministro da Educação” deu e sobrou. Ah, e isso joga luz sobre o quê? O bolsonarismo, lógico.
Mais inspiradores, os exemplos que encontramos no dicionário luso são os famosos versos de Camões sobre o amor: “É um contentamento descontente/ É dor que desatina sem doer”.
Com todo o seu potencial poético, é uma pena que a carreira do oxímoro no Brasil seja prejudicada por uma mesquinha disputa de doutores.
Sempre que a gente enuncia a palavra como a escrevo aqui, proparoxítona, aparece um para corrigir: “Oximoro, sem acento!”. Ah, como meu contentamento é descontente nessa hora!
Ninguém aguenta lidar com sabichonice o tempo todo. A “correção” é um equívoco, mas explicar isso dá algum trabalho, e assim vamos aprendendo a evitar o termo para poupar dor de cabeça.
O problema começa na opção de alguns dicionaristas brasileiros por entender a palavra —exclusivamente!— como paroxítona, e de vogal aberta ainda por cima: “oximóro”.
Não são quaisquer dicionaristas. Aurélio, Houaiss e Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras formam um ataque poderoso —para não falar no corretor do Word.
Na vida real, pouca gente favorece essa prosódia feia, mas não faltam professores de português para comprar a idiossincrasia dos lexicógrafos e sair repetindo que oxímoro é uma cacoépia, uma pronúncia inculta, como “rúbrica” ou “fluído”.
Não é. O que se omite aí é que outros dicionaristas tão respeitáveis quanto aqueles pensaram e pensam diferente. Se em Portugal a forma consagrada é “oxímoro”, a mesma abraçada pela maioria dos falantes no Brasil, qual será o sentido de criminalizar o belo proparoxítono?
O sentido sabichonista, é claro. Seria mais sábio, além de mais respeitoso com a língua e seus falantes, registrar as duas formas e observar que a pronúncia dominante no mundo lusófono, com acento em “xí”, se baseia na matriz grega.
Em seguida acrescentar que a forma com a sílaba tônica “mo”, menos usada, imita a sonoridade que a palavra tinha no entreposto latino em que contratamos sua importação.
Se não faltam argumentos eruditos a nenhum dos lados da briga, por que não deixar que cada um fale do seu jeito e seja feliz? Porque o que é mais sábio é também, invariavelmente, ofensivo às leis do sabichonismo.
A escola de trato com a língua que cria interdições supérfluas para melhor exercer seu poder bem poderia ser definida num oxímoro perfeito: sabedoria estúpida.

Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo

Brasil já é uma democracia sob supervisão militar

Sempre esteve claro para os observadores externos que o Brasil teria que pagar uma conta alta por ter eleito um líder tão perigoso e irresponsável quanto Jair Bolsonaro.
Mas os acontecimentos dos últimos meses asseguram que essa conta será ainda mais trágica do que se evidenciava.
Centenas de milhares de brasileiros provavelmente vão morrer desnecessariamente devido à reação caótica e incompetente do governo à Covid-19.
E, mesmo que seja possível evitar os piores ataques à democracia –quer seja sob a forma de um golpe militar ou de uma concentração gradual do poder político no palácio presidencial—, a Presidência de Bolsonaro deixará a democracia brasileira gravemente enfraquecida.
Quando populistas –de direita, como Bolsonaro, ou de esquerda, como Hugo Chávez— chegaram ao poder, cientistas políticos avisaram sobre os danos que eles infligiriam aos cidadãos comuns.
Pelo fato de afirmarem que eles e apenas eles representam o povo, esses políticos são incapazes de aceitar a dissensão legítima.
Assim, começam pouco a pouco a atacar tanto as instituições políticas independentes quanto tribunais, especialistas independentes e autoridades de saúde pública.
Entretanto, na última década, quando figuras desde Viktor Orbán até Donald Trump foram chegando ao poder, esses avisos, na maior parte do tempo, passaram batidos.
Depois de décadas em que as elites políticas locais haviam se colocado em descrédito, seus avisos sobre os líderes novatos que ameaçavam tomar seus lugares soavam como súplicas especiais.
Particularmente nos países com corrupção arraigada e cujos políticos tradicionais eram sabidamente oportunistas, muitos cidadãos, compreensivelmente, acharam difícil se preocupar com coisas como o Estado de Direito ou a separação dos poderes.
“Essa gente toda berrando sobre o perigo do populismo está querendo salvar a própria pele, nada mais”, desconfiavam.
Esse ceticismo pareceu justificado nos primeiros anos. Descobrimos que o navio do Estado é um transatlântico bastante robusto.
Mesmo quando ele se desvia da rota, demora para se chocar com um iceberg. Até alguns meses atrás, a maioria dos brasileiros (e a maioria dos americanos também) podia alegar justificadamente que os desastres previstos não os haviam atingido.
crise extraordinária de saúde pública dos últimos meses mudou toda essa situação. Enquanto algumas democracias conseguiram conter o vírus e agora podem retornar para alguma forma de quase normalidade em relativa segurança, Bolsonaro passou meses negando o perigo evidente.
Ele participou de protestos contra quarentenas. Tentou combater a soberania dos governadores, mandando-os voltar à normalidade. Demitiu dois ministros da Saúde. Incentivou a população a tomar remédios de charlatão e a desafiar as medidas simples que poderiam proteger a saúde pública.
Diante de tudo isso, não surpreende que o Brasil agora tenha a distinção de ser o país com o segundo maior número confirmado de casos de Covid-19 no mundo –e, desde alguns dias atrás, o segundo maior número de mortes confirmadas.
E, em vista da deficiência do regime de testes no país, é quase certo que essas cifras subestimem a devastação real semeada pelo vírus.
Como se isso não bastasse, a ameaça à democracia brasileira também vem crescendo. Com Bolsonaro cada vez mais impopular, os militares vêm exercendo papel crescente em sua administração.
Com seus filhos aparentemente sob investigação, as tentativas de Bolsonaro de solapar a independência dos órgãos policiais e judiciários crescem a cada semana que passa.
Como observador externo, é impossível prever qual dos cenários sombrios para o futuro político imediato do país discutidos atualmente em detalhes pelas maiores publicações brasileiras vai se revelar presciente, se é que algum vai, e quais mostrarão ser paranoia.
Mas o que chama a minha atenção, a distância, é a mudança radical do teor geral da discussão.
Especialistas brasileiros que consultei alguns anos atrás sentiam confiança na força das instituições brasileiras. Os militares haviam se afastado de vez da política, disseram-me.
Mesmo que Bolsonaro cortejasse generais e elogiasse o regime militar, não havia jeito de o Exército se deixar atrair de volta à política. Hoje vejo esses mesmos especialistas debaterem, com urgência máxima, o que os generais fariam ou deixariam de fazer sob diversas circunstâncias.
Diz história apócrifa que as rãs não percebem quando a água começa a ferver. Mais ou menos da mesma maneira, a população brasileira não tomou consciência da extensão em que a possibilidade de ruptura democrática hoje molda a política brasileira.
Mas quando especulações sobre o que líderes militares aceitariam (ou não) começam a moldar as decisões dos representantes eleitos do povo, a essência da democracia já foi esvaziada.
Como me disse Filipe Campante, um colega da Universidade Johns Hopkins, “o Brasil já é uma democracia sob supervisão militar”.

Texto de Yascha Mounk, na Folha de São Paulo. Yascha Mounk é cientista social e professor associado da Universidade Johns Hopkins.

Saudade do tempo em que o dia seguinte podia ser melhor que o anterior

Tenho tido saudade de muita coisa e, ao escrever isso, já imagino meu amigo Eduardo Heck de Sá esbravejando: “Saudade é de direita!”.
Tudo que Eduardo não gosta ele diz, meio brincando e meio sério, que é de direita: luz fria, ultracorreção gramatical, porcelanato, protetor solar, adoçante, Julia Roberts, Nespresso, gente que reclama do calor. Uma vez reclamei de coentro e ele me fuzilou com o olhar: “Gregorio, não gostar de coentro é de direita”.
Sei que Eduardo vai me achar reacionário, mas tenho tido uma saudade danada de tudo quanto é coisa.
De sentar na padaria e encontrar as mesmas pessoas e ver seus filhos crescerem e mostrar que minha filha cresceu. E do Tiago da padaria, que me contava como andam os ensaios da Paraíso de Tuiuti, sua escola de coração.
Saudade do papo furado com o vizinho no elevador, do papo aleatório com o motorista do Uber, do papo bosta na fila do banco. Saudade de comentar as notícias com os vizinhos em pé, ao lado da banca de jornal, com quem quer que estivesse ali —a lateral da banca é o avô do Twitter.
Saudade de uma trombada, um encontrão, uma turra —essa palavra tão boa pro choque de duas testas.
Saudade de não ver a vida passando na frente dos meus olhos por ter levado a mão ao olho. Saudade de tomar um perdigoto na cara e isso ser apenas desagradável e não a crônica de uma morte anunciada. Saudade de nunca ter ouvido a palavra comorbidade —a mais feia da nossa língua.
Saudade de achar que qualquer velhinho de óculos escuros é o Rubem Fonseca e de ver o Moraes Moreira a caminho da padaria e de imaginar o que perguntaria se conhecesse o Aldir Blanc, de cumprimentar o Flavio Migliaccio como se ele me conhecesse, de inventar um pretexto pra escrever um email pro Sérgio Sant’Anna —e de deixar o email pronto, à espera do momento certo que nunca chegou.
Saudade de reclamar que o presidente era apenas inepto, inapto, estúpido e corrupto. Saudade de quando o presidente ainda não era, também, um genocida. Saudade de não gritar “assassino” pela janela à noite, saudade de ter voz à noite e de ir dormir sem pensar que o dia seguinte ia ser pior.
Saudade de um tempo em que o dia seguinte ainda podia ser melhor que o anterior. Saudade de imaginar a luz no fim do túnel. Saudade de quando viver ainda não era contar corpos.
Saudade de gostar de pensar no futuro. Saudade do amanhã de ontem. Já não se fazem mais futuros como antigamente.

Crônica de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

Passes que dei contra o Uruguai foram meus grandes momentos na Copa de 1970

São três meses de quarentena. Quando o tédio aperta, me dá vontade de ir a algum lugar que tenha raríssimos casos da doença.

Esses países, antes de começar a epidemia, fecharam tudo. Mesmo com o sucesso do isolamento, continuam alertas, com cuidados. As muitas diferenças entre o Brasil e esses lugares não são justificativas para tantos erros, descasos e irresponsabilidades.

Tenho vontade de ir à Nova Zelândia, pois lá há uma primeira-ministra competente, firme, corajosa, que gosta da ciência, do diálogo e que comanda o país e a epidemia. Quando aparece alguém infectado, há uma intensa investigação dos contatos, dos contatos dos contatos, e assim sucessivamente.

Tenho, às vezes, vontade de ir para outro lugar, mas não vou, pois aqui é meu país, aqui tem pão de queijo com cafezinho, tem, principalmente, o carinho de pessoas queridas.

PARTIDA MAIS PERIGOSA

Dia 17 de junho, 50 anos atrás, o Brasil ganhou do Uruguai por 3 a 1 e foi para a final da Copa de 1970. Foi a partida mais perigosa, por ser mata-mata e porque o Uruguai, que tinha a melhor defesa do Mundial, fez o primeiro gol.

Existe, no Rio de Janeiro, uma tradicional pelada, fundada pelo craque Gerôncio, jogada no campo do Piraquê, com juiz, times uniformizados e tudo mais. Um dos participantes é o professor de engenharia da UFMG Luiz Rafael Palmier (Rafa), que viveu muito tempo no Rio. Ele escreveu um delicioso livro, que, brevemente, será publicado com o nome “A melhor pelada do mundo –50 anos em 50 crônicas dentro de campo”.

Segue o texto de uma das crônicas, “A morosidade genial do rei da área”: “Jorge avança pela lateral esquerda. Está no mesmo lugar do campo em que o craque Tostão se encontra no estádio Jalisco, de Guadalajara, ao dar o fantástico passe para o gol do Clodoaldo, no jogo entre Brasil e Uruguai. Em décimos de segundos, Jorge, inspirado por Tostão, dá o passe com o requinte e o preciso cálculo de que a bola deveria primeiro quicar, para que ficasse à feição para o arremate do genial João, o rei da área, com o pé direito. Mais ainda, por ter cantado o passe, ele supera em muito aquele de Tostão”.

Eu não tenho o talento de Jorge, mas, em minha pretensa sabedoria técnica, suspeito que, sem pensar, inconscientemente, eu tenha, como Jorge, calculado a velocidade da bola e percebido o momento em que ela iria quicar, para chegar, no instante exato, para Clodoaldo finalizar. Existe um saber que antecede ao pensamento.

O segundo gol da seleção contra o Uruguai é o símbolo do futebol revolucionário para a época. O Uruguai atacava, e o Brasil tinha os 11 jogadores recuados. Jairzinho recuperou a bola, e ele, eu e Pelé trocamos passes no próprio campo, e Jairzinho foi receber meu passe na intermediária do Uruguai. Uma aula de contra-ataque moderno.

Naquele gol, como no primeiro, tenho a soberba impressão de que, sem pensar, calculei para que a bola chegasse à frente de Jairzinho e atrás do marcador, já que os dois corriam olhando para gol, e o zagueiro estava dois metros à frente de Jairzinho. Se desse o passe mais longo, o zagueiro chegaria primeiro.

O ser humano, narcisista, enamorado de si mesmo, deseja na vida ter seus momentos de heroísmo, mesmo que seja para os outros algo banal, rotineiro. Os três passes que dei contra o Uruguai, dois para gols e o terceiro para Pelé fazer o quase gol mais bonito da história, foram meus grandes momentos de heroísmo na Copa.

As memórias são do craque e cronista esportivo Tostão, na Folha de São Paulo.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Feminismo ocidental nunca questionou privilégios de brancas, diz ativista

De acordo com Françoise Vergès, a pandemia, embora agrave as desigualdades, não mudará o modo como mulheres brancas se aproveitam da exploração do trabalho doméstico de mulheres que pertencem a minorias.
A cientista política, historiadora, ativista e especialista em estudos pós-coloniais francesa lança agora no Brasil seu mais recente livro, “Um Feminismo Decolonial”, no qual aborda movimentos feministas antirracistas, anticapitalistas e anti-imperialistas, em contraste ao feminismo branco europeu, chamado de civilizatório, que se quer universal e acredita poder salvar as mulheres de outros tons de pele do obscurantismo.
O termo decolonial, principal conceito do livro, faz referência ao esforço de tornar pensamentos e ações livres do legado das diversas colonizações, e se diferencia, na tradução ao português, de descolonial, que se refere aos processos históricos de desligamento das metrópoles e ex-colônias.
Vergès, de uma família de militantes comunistas de origens francesa e vietnamita, cresceu na ilha da Reunião, departamento francês no oceano Índico próximo à África, estudou nos Estados Unidos, lecionou no Reino Unido e sucedeu a escritora Maryse Condé como presidente do Comitê Nacional pela Memória e História da Escravidão francês. Em entrevista, ela fala sobre as mudanças no feminismo e os efeitos da pandemia sobre as mulheres.
O feminismo passa por uma mudança?
O feminismo europeu, branco, burguês, civilizatório perdeu sua hegemonia. Ele conseguiu, nos anos 1960 e 1970, impor sua narrativa e a ideia de que existia apenas um feminismo, o seu. O que é uma mentira.
As mulheres racializadas sempre lutaram. Jornais, sindicatos —de faxineiras, camponesas, operárias— e militantes, no Sul ou nas comunidades racializadas do Norte, se fizeram ouvir, mas o feminismo civilizatório conseguiu dominar por um tempo.
Sempre existiram feminismos que não se dedicam apenas à igualdade entre mulheres e homens, mas que formulam as questões de raça, classe, idade, sexualidades.
Havia então uma hegemonia no feminismo?
Ao ler a história do feminismo, acredita-se que só as mulheres europeias entenderam a libertação das mulheres. As feministas europeias fazem de sua história a universal, sendo que é local.
O feminismo não pertence às mulheres brancas. Mas o feminismo ocidental nunca se questionou sobre os privilégios que são dados às brancas, que repousam sobre o racismo. Ele quer fazer crer que estava protegido como que por milagre das ideologias e das práticas racistas que se perpetuam por séculos em favor de seus países.
Quando as mulheres europeias, por exemplo, não tinham o direito ao divórcio, a estudar ou exercer determinadas profissões, tinham o direito de serem proprietárias de homens e mulheres escravizados, e o tinham porque são brancas, a cor é então mais importante que seu gênero.
O que a senhora pensa sobre o MeToo?
Primeiramente, foi uma mulher afro-americana, Tarana Burke, que lançou o movimento, em 2017, para jovens negras vítimas de violência sexual. Nas mãos das feministas brancas, rapidamente virou individualista, reforçando histórias individuais, sendo que as violências machistas são estruturais, inseparáveis das estruturas raciais de poder e de dominação.
Se o MeToo quer combater violências, deve reconhecer a dimensão estrutural, as ligações entre essa brutalidade e os regimes de dominação econômica, cultural e social. Lutar contra as violências machistas é lutar contra violências que tocam os seres humanos, a terra, o solo, as árvores, os animais, os rios, os mares para aumentar o lucro de poucos.
E qual a importância do feminismo decolonial?
Esse enfraquecimento do feminismo civilizatório é graças ao trabalho das feministas decoloniais, que jogam luz sobre as traições e as cumplicidades —apoio às guerras imperialistas, islamofobia, negrofobia, transfobia, ataque às trabalhadoras do sexo.
Escutamos mais claramente as vozes dos feminismos decoloniais, as imensas manifestações no Brasil, no Chile, no México, na Argentina, em que as manifestantes cruzam seus ataques aos feminicídios à defesa do direito dos autóctones à terra e contra o neoliberalismo. Quando elas dizem que o violador é o Estado, o juiz, o policial, você, isso é formidável.
Os feminismos decoloniais são mais fortes hoje porque entramos numa nova etapa de decolonização, em que atacamos a colonização do poder, o racismo estrutural, o capitalismo racial. Não são feminismos que buscam um acordo com o poder e reformar o Estado, porque sabem que o Estado está a serviço do patriarcado e do capitalismo racial.
Como a pandemia atinge as mulheres?
O aumento da pauperização resultante das políticas de confinamento vão atingir de maneira mais brutal as mulheres racializadas do Norte e as do sul global, que serão as primeiras demitidas, privadas de direitos, precarizadas e vulnerabilizadas. Além disso, o capitalismo digital, que encontrou no confinamento a ocasião dos sonhos para se fortalecer, está longe de ser neutro, são homens brancos que concebem os algoritmos.
Vimos também que são faxineiras, enfermeiras, caixas que estão na linha de frente, e que o maior número de mortos está nas comunidades negras.
Com o isolamento, mulheres têm de lidar com o trabalho doméstico sem faxineiras, isso evidencia o racismo?
Claro! Mas o confinamento também mostra que a casa não é um refúgio, que é um lugar perigoso para mulheres e crianças. Os feminicídios se dão na maior parte das vezes nos lares. O lar é uma invenção do Estado para manter o patriarcado, o isolamento e para reforçar o individualismo.
Mas o isolamento pode levar a uma conscientização quanto às desigualdades entre as mulheres?
Essas feministas [civilizatórias] se beneficiam demais da exploração. Imagine todo o conforto que tiraram disso. Graças à exploração, elas têm tempo para manter um corpo em forma e saudável, se educar, e comprar roupas baratas costuradas por mulheres de Bangladesh, Vietnã, México.
As feministas civilizatórias podem ficar falando sobre direitos das mulheres porque mulheres limpam as universidades, os parlamentos e as casas onde elas discursam. Quando elas falam de igualdade, elas nunca atacam o capitalismo racial.
Elas vão reivindicar talvez uma melhor divisão de tarefas, ainda assim é uma reivindicação do feminismo burguês. E, se depois da pandemia elas perderem alguns de seus privilégios, isso não vai fazer com que queiram a revolução. Essas mulheres, que são por vezes vítimas do machismo de seus pais, companheiros, filhos e irmãos, são também suas maiores cúmplices, são as guardiãs do machismo e do patriarcado branco racista do qual se beneficiam.
Como pensar a proibição do uso do véu na França agora, com a obrigatoriedade do uso de máscaras em locais públicos?
obrigação do uso de máscaras mostra bem que a interdição do véu era ideológica e islamofóbica. Mas não é isso que vai acabar com a perseguição a mulheres muçulmanas que usam véu. Foram as feministas francesas que, no fim dos anos 1980, militaram ativamente para a proibição do véu. Elas queriam civilizar as muçulmanas, que viam como submissas, e salvá-las do patriarcado. Essas feministas não são apenas cúmplices, elas estão na origem das leis racistas e sexistas.

UM FEMINISMO DECOLONIAL

  • Preço R$ 54,90 (144 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autor Françoise Vergès
  • Editora Ubu
  • Tradutoras Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo

Nunca houve nada igual à Copa de 70

Um Carnaval em junho, cuja empolgação aumentava a cada triunfo nos gramados. Pessoas de aparência estranha (os cabelos longos, com enormes costeletas os homens e franjas tipo cortina as mulheres, metidos dentro de calças boca de sino) saíam às ruas de carro (Opalas, Corcéis, Fuscas, todos coloridos) com o intuito deliberado de provocar engarrafamentos. Numa zorra, abraçavam-se, beijavam-se, sambavam, cantavam estribilhos bandalhos envolvendo a rainha da Inglaterra. Gritavam e buzinavam. Buzinavam demais.
Uma espécie de ancestral do janelaço —mas contra outro adversário, o regime militar. Há 50 anos, quando o Brasil ganhou a Copa do México, a ditadura operava o seu milagre.
O menino que eu era, com sete anos, não entendia aquilo direito. Tampouco por que meu pai, depois da vitória sobre a Itália na final, insistia em chamar o garçom do bar onde estávamos festejando, na Lagoa, de Clodoaldo. O cara nem de longe parecia o Clodoaldo. Mas a alegria mandava, e eu, nas peladas improvisadas após as partidas, já estava quase conseguindo imitar o Jairzinho dando chapéu no goleiro, matando no peito e fuzilando a rede. O Clodoaldo, que driblara quatro italianos na ginga de corpo, era muito mais difícil.
Sob o sol vertical do México, Félix, Carlos Alberto, Brito, Piazza, Fontana, Everaldo, Marco Antônio, Gérson, Rivelino, Paulo César, Tostão, Roberto, Edu, Pelé, além dos dois já citados —craques azeitados por Zagallo numa modernidade tática que até hoje surpreende.
Respeito quem viveu 1958 e põe o time campeão do mundo pela primeira vez na Suécia como o melhor do futebol brasileiro. Mas não entendo as viúvas de 1982, que endeusam o fracasso da equipe comandada por Telê, o teimoso. Palavra de criança: nunca houve nada igual à Copa de 70. E, como sabe o escritor Javier Marías, “o futebol é a recuperação semanal da infância”.

Texto de Álvaro Costa e Silva, na Folha de São Paulo

O shopping é o lugar ideal para quem deseja adquirir o novo coronavírus

O fim de semana foi marcado pela reabertura do comércio e dos shopping centers em algumas capitais do Brasil, justo quando o país ascendeu ao segundo lugar no ranking mundial de mortos e infectados pela Covid-19. O timing não poderia ser melhor para uma liquidação —da população brasileira, no caso.
Médicos, epidemiologistas e outros especialistas da área de saúde insistem que seria necessário achatar a curva de contágio antes de flexibilizar a quarentena. Mas, se olharmos com atenção os gráficos do avanço da pandemia, veremos que a curva do Brasil já foi achatada e se transformou numa linha reta, que aponta para o alto e avante.
Para chegar ao pico da pandemia e ao topo do ranking mundial de vítimas do novo coronavírus, o Brasil optou pela escada rolante. As autoridades estão fazendo a sua parte para que a população esteja vestida apropriadamente para a ocasião. E quem paga a conta, é claro, é o consumidor.
O pagamento pode ser feito em dinheiro, débito, crédito e/ou com a própria vida. A última opção é a menos valorizada e não paga nem uma blusinha de loja de departamento. O melhor a fazer é parcelar as compras a perder de vista, já que a probabilidade de sobreviver até a próxima fatura do cartão é menor do que os juros.
Os registros de filas quilométricas e aglomerações em ambientes fechados não deixam dúvidas: o shopping center é o lugar ideal para quem deseja adquirir o novo coronavírus. O consumidor pode ganhar a Covid-19 de brinde, de forma inteiramente gratuita, e ainda pode compartilhar o mimo com seus entes queridos.
Nos templos do consumo, os rituais agora se adaptam ao novo normal. Distanciamento de dois metros, uso obrigatório de máscaras, triagem com termômetro infravermelho, higienização de produtos e sacrifício de funcionários e consumidores como oferta ao deus Mercado.
Os provadores estão fechados por medidas de segurança, mas isso não impede o consumidor de escolher um look matador. Até porque, com o caixão lacrado, não vai fazer a menor diferença.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

Maracanã é visto de forma diferente segundo as cores de cada um

Ao completar 70 anos nesta terça-feira (16), o Maracanã, outrora o maior estádio do mundo, tem significado especial na memória do torcedor e é diferente segundo as cores de cada um.
Atleticanos mineiros e coxas o têm como palco de seus únicos títulos brasileiros, em 1971 e 1985.
Palácio de Zico para os rubro-negros, de Mané Garrincha e companhia bela para os botafoguenses, da Máquina Tricolor de Rivellino para os torcedores do Fluminense, de Roberto Dinamite para os vascaínos.
Nele, o Palmeiras conquistou a Copa Rio de 1951, diante de 100.093 torcedores ao empatar com a Juventus por 2 a 2 e goleou o Flamengo de Zico, por 4 a 1, para surpresa de 112 mil pessoas, em 1979, show que fez de Telê Santana o treinador da seleção brasileira.

Já o santista o teve como sua casa, onde superou o Benfica e o Milan para ser bicampeão mundial em 1962/63, além de golear sucessivamente o Botafogo de Mané em jogos memoráveis nos anos 1960.
Se dói na alma corintiana lembrar que, em 1980, Roberto Dinamite marcou cinco vezes no massacre por 5 a 2 com Sócrates e tudo, a dor se esvai quando recorda dos 70 mil fiéis que o invadiram, em 1976, para ver o time finalista no Brasileiro ao empatar 1 a 1 com o Flu de Riva, perante 146 mil torcedores.
Para não falar do primeiro título mundial Fifa conquistado em empate com o Vasco de Romário em 2000, quando o ali lançado cantochão "O,o,o, todo poderoso Timão" tomou conta da Cidade Maravilhosa.
Também porque a seleção paulista ganhou por 3 a 2 da carioca no "Jogo da Rainha", em 1968, o Maracanã foi chamado de Recreio dos Bandeirantes, tão bem os da Pauliceia se dão lá.
Quando Sua Majestade, a Rainha Elizabeth, visitou o Brasil, fez três pedidos: conhecer o Bondinho do Pão de Açúcar, o Cristo Redentor e ver o Rei Pelé no Maracanã.
Curioso nisso tudo é constatar que os alvinegros de São Paulo ganharam no estádio carioca alguns dos maiores títulos de suas histórias e que nenhum carioca conquistou taça do mesmo porte em casa.
Como é verificar, também, que a seleção brasileira tem o Maraca mais como velório que como salão de festas.
Porque nenhuma vitória se compara à derrota de 1950, o célebre Maracanazo
Houve vitórias importantes como a contra o próprio Uruguai quando Romário classificou o time para ser tetracampeão nos Estados Unidos; houve a final da Copa das Confederações contra a Espanha e houve a medalha de ouro olímpica na disputa com a Alemanha.
Nada à altura da virada uruguaia em 17 de julho de 1950.
O Maracanã, como se sabe, tem o nome do jornalista rubro-negro Mário Filho, irmão do tricolor Nelson Rodrigues, e ambos não perdoariam a ausência de referência ao Fla-Flu num texto sobre seus 70 anos.
De fato, o clássico mais colorido do mundo, o que começou 40 minutos antes do nada, merece.
E no que ficou conhecido como o "do gol de barriga de Renato Gaúcho", 3 a 2 para o Flu, na decisão do Campeonato Carioca de 1995, no finzinho, para impedir o título do centenário flamenguista, com Romário em campo e 120 mil presentes, a língua portuguesa lavrou um tento: uma paulista, em sua primeira visita ao Maracanã, ao entrar na tribuna e ver a cena descortinada à sua frente, entre cantos e bandeiras, materializou diante do marido, pela primeira vez na vida dele, a expressão ficar boquiaberta.
Quase caiu-lhe o queixo.

Texto de Juca Kfouri, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Com Bolsonaro, país corre risco de virar Venezuela

Quando os professores José Arthur Giannotti, Denis Lerrer Rosenfield e a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) dizem uma mesma coisa, é bom que se preste atenção. Afinal, cada um com suas qualificações, eles têm pouco em comum.
Giannotti disse: "Bolsonaro dá um passo além, em seguida dá um passo recuando. Aos poucos, vai instalando o Estado de modo em que ele possa se transformar em uma Venezuela".
Rosenfield: "No caso da experiência venezuelana, considerada por Lula um exemplo de democracia, processou-se a subversão da democracia por meios democráticos. As instituições democráticas foram inicialmente preservadas, enquanto o seu interior foi progressivamente minado. A imprensa e os meios de comunicação em geral foram, passo a passo, calados, o Legislativo perdeu suas funções, com o presidente passando a legislar por decretos, e o Supremo Tribunal, após ser atacado, foi cooptado. Milícias foram criadas e passaram a violentar e controlar os cidadãos. No Brasil, estamos vivendo um processo semelhante nos seus inícios, só que de sinal trocado".
Joice Hasselmann, ex-líder do governo Bolsonaro no Congresso: "Antes que o Brasil caia num chavismo de verdade com o sinal trocado, eu propus o processo de impeachment".
Antes da eleição presidencial de 2018 havia gente assustada com a possibilidade de o Brasil virar uma Venezuela na mão do PT. Deu-se o imprevisível e surgiu o risco de uma venezuelização com Bolsonaro.
Ele foi um capitão indisciplinado, Hugo Chávez foi um coronel golpista. Ambos foram eleitos e ambos eram paraquedistas. Uma vez no poder, Chávez aparelhou-o com militares e, nas palavras do vice-presidente Hamilton Mourão, "existe uma corrupção muito grande nas Forças Armadas venezuelanas. Elas perderam a mão em relação à missão que têm no país".
Bolsonaro nomeou centenas de militares da reserva e da ativa para cargos na sua administração. No Ministério da Saúde há ao menos 21. Seu governo mostrou-se tolerante com policiais militares amotinados, mas não mexeu com a disciplina dos quartéis. O chavismo firmou uma base numa milícia popular, enquanto a milícia bolsonarista é sobretudo eletrônica. As militâncias de Bolsonaro e do chavismo assemelham-se na hostilidade aos meios de comunicação, ao Congresso e ao Judiciário.
Bolsonaro repete que respeita a Constituição e nunca falou em referendos, enquanto Chávez atropelou as instituições durante seu primeiro mandato. Bolsonaro, como Chávez e Nicolás Maduro, produz uma crise por semana. A seu modo, tornou-se um excêntrico na comunidade internacional.
A grande diferença entre os dois países está nas suas economias. A brasileira é seis maior que a venezuelana. Além disso, Pindorama tem empreendedores no andar de cima, enquanto a elite da Venezuela vivia nas tetas da riqueza do petróleo. A sociedade brasileira tem uma complexidade que a venezuelana nunca teve.
Essas ressalvas valem pouco. Se o passado explicasse tudo, o nazismo teria surgido na Grécia, não na Alemanha, e Cuba nunca teria virado um país comunista.
Assim como Paris encheu-se de nobres russos nos anos 20 do século passado, Miami está cheia de cubanos e venezuelanos que não acreditavam que seus países virassem o que viraram. Eles não deram atenção ao que diziam pessoas como Giannotti, Rosenfield e Hasselmann.

Texto de Elio Gaspari, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Tolstói via o casamento como ferramenta social de destruição da vida humana

O conde Liev Tolstói (1828-1910) é conhecido pela sua dura crítica à civilização. Mas, antes de irmos à sua crítica social, lembremos que ele quase se matou.
Tolstói sofreu de depressão parte da sua vida, o que revela que pessoas portadoras desse quadro podem desenvolver grandes obras (e ter uma vida rica), exemplificando um daqueles casos que Freud chamaria de sublimação bem-sucedida: quando você faz do seu sintoma algo construtivo.
Tolstói não se sentia muito bem na vida social de salão, muito comum na aristocracia russa de sua época. Indicativo disso era o fato de que preferia viver na sua propriedade rural, onde nascera, Iasnaia Poliana, à vida urbana. E quando foi obrigado pela mulher a se mudar para a cidade, preferiu a provinciana Moscou à cosmopolita e capital do império, São Petersburgo. E em Moscou comprou uma casa num bairro proletário, apesar de ser uma excelente propriedade. Tolstói era um homem rico.
Em 1882, Tolstói lançou “Uma Confissão”, publicado aqui pela editora Mundo Cristão. Uma pérola. Neste breve relato de sua depressão, Tolstói vai das dificuldades do apetite e do sono à falta de libido e ao desejo de se matar, passando por discussões com Schopenhauer e seu pessimismo niilista em filosofia, chegando às duras críticas ao cristianismo morto, na sua opinião, da Igreja Ortodoxa Russa, apoiadora da monarquia autocrática czarista.
O grande russo não se matou, graças a Deus. Sua “cura” se deu quando cunhou sua peculiar concepção de cristianismo radicalmente anti-institucional, associado a uma certa idealização da vida do camponês russo, os mujiques, que ele bem conhecia, uma vez que era proprietário de terras e, em alguma medida, dos servos que nelas viviam. Chegou mesmo a criar uma escola para os filhos dos servos e se dedicou a uma vida próxima ao estoicismo, permeada por um culto à natureza e à vida simples, ainda mais arredio ao mundo urbano e civilizado.
Enfim, se curou, não só pela continuidade da sua obra, mas pelo vínculo com a terra e seus servos, num cotidiano muito próximo deles. É claro, Tolstói não era um santinho, teve amantes entre as servas e, provavelmente, filhos com algumas delas. Estamos longe da percepção puritana e infantil que forma o mundo da cultura hoje, que sonha com super-heróis e super-heroínas mortos para o Eros.
E sua crítica à civilização? A descrição da repressão do desejo feminino em Tolstói é muito conhecida em obras como “Anna Kariênina”. Menos conhecidas, talvez, sejam as suas obras em que o grande russo descreve os modos de desespero dos homens dentro dessa mesma civilização. O sofrimento do homem é distinto do da mulher, mas não “menor”. Apesar, é claro, que ao homem casado é permitido continuar a ter amantes, e à mulher casada, não. O esmagamento do homem se dá de outros modos.
Sabe-se que Tolstói via o casamento como uma ferramenta social de destruição da vida humana, por mergulhar os casais num tédio profundo. Aparentemente, sua utopia ao final da vida era uma espécie de vida fraterna e rural entre homens e mulheres, sem desejos carnais violentos, regados a comida vegetariana (ele tornou-se vegetariano). Não nos enganemos: Tolstói virou um niilista contra a vida civilizada conhecida e via com bons olhos uma espécie de socialismo cristão radical.
Em novelas curtas, como “A Morte de Ivan Ilitch” e “Sonata Kreutzer”, Tolstói descreve a destruição de dois maridos pelo casamento e pela ambição masculina materialista.
O primeiro, que chega à morte “por rim móvel” (Tolstói debochava da medicina de sua época), vê o início da felicidade da sua mulher em se livrar do seu marido combalido, depois de ele se dedicar duramente a realizar todos os desejos da mulher continuamente entediada.
O segundo descreve o desespero do marido tentando evitar que sua mulher bela e jovem o traísse com homens jovens, uma vez que ele, o marido, se desgastara tentando “dar tudo do bom e do melhor” para sua família.
Enfim, a depressão e o tédio são doenças que nos invadem de modo invisível e podem ser mortais e contagiosas.

Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo