Há cinco anos, quando Mianmar ainda estava sob regime militar, alguns amigos ocidentais e chineses me perguntaram como podia haver tamanha opressão em um país onde o budismo, que prega a não violência, é a religião predominante.
Eu estava em um exílio autoimposto na época, estudando jornalismo na Universidade de Hong Kong, e eu respondia que os líderes militares do país eram imorais, budistas apenas nominalmente. Eu também apontava que os governantes monárquicos pré-coloniais de Mianmar –também budistas apenas da boca para fora– também cometeram grandes crimes.
Em outras palavras, não havia nada de errado com a religião em si; o problema era dos políticos que zombavam dela.
Mas não posso dar mais essa resposta – não desde os recentes ataques mortais por budistas contra muçulmanos em Meikhtila, uma cidade na região central de Mianmar sem história de violência sectária. Os relatos de que monges instigaram alguns dos incêndios, espancamentos e assassinatos sugerem um problema muito mais profundo do que autoridades sem princípios.
A população em geral em Mianmar, que é predominantemente budista (aproximadamente 90%) e da etnia bamar (mais de 65%), gostaria de acreditar que os monges budistas que supostamente participaram desses incidentes brutais não são monges reais. Isso seria mais fácil de contemplar do que a realidade dolorosa de que a venerada ordem budista, a Sangha, foi corrompida.
Houve um tempo em que a maioria dos homens e mulheres jovens que ingressavam na ordem era movida pela busca espiritual. Mas durante o meio século de governo da junta, foram as guerras ao longo das áreas de fronteira e a pobreza esmagadora que levaram os noviços aos mosteiros. Muitos eram órfãos sem outras opções; outros eram crianças confiadas aos monges por pais carentes tentando garantir abrigo e algum ensino para elas. No perfil de seus recrutas, a Sangha não era muito diferente do Exército –e às vezes os abades eram tão brutais quanto os oficiais.
Eu cresci nos anos 90 em uma família budista conservadora e passei todos os verões após a quinta série estudando nos mosteiros. Em vez de se concentrarem na meditação, os monges praticavam astrologia para atrair doações e se ocupavam coletando objetos domésticos como donativos. Hoje, muitos monges possuem celulares digitais, carros de luxo e televisores de LCD. Alguns também praticam jogos de azar.
"Apenas quando você crescer você buscará o caminho da espiritualidade", me disse um abade em Yangun na semana passada. "Fora isso, a maioria dos monges leva uma vida normal, não diferente da dos leigos."
Pior, os monges que conheci naqueles verões viam a Sangha como uma seita, exibindo pouco respeito por outras religiões e muita indiferença pela natureza universal dos ensinamentos do Buda. Enquanto Mianmar for política e economicamente instável, a ordem continuará sendo um refúgio para pessoas em dificuldades, mas também, em alguns casos, um ninho de sectarismo.
Em 2001, ataques contra muçulmanos ocorreram em Taungoo, Pyinmana, Kyaukse e outras cidades na região central de Mianmar, e vários dos jovens monges envolvidos foram presos. Eu conheci alguns deles na Prisão de Myingyan, perto de Mandalay, onde eu estava cumprindo pena como estudante dissidente.
Um me disse orgulhosamente que defendeu o budismo incendiando propriedades de muçulmanos. Outro, conhecido como Wirathu, que estava preso em uma prisão diferente pelos mesmos crimes, agora realiza uma campanha chamada movimento 969, fazendo discursos de ódio contra os muçulmanos.
No ano passado, após confrontos contra os rohingyas, uma minoria muçulmana sem Estado no Estado de Rakhine, alguns amigos meus que são monges me disseram que direitos humanos e os valores ocidentais não se aplicam àquele grupo. Quando perguntei por que não, e argumentei que, como seres humanos, os rohingyas deveriam ser tratados segundo os princípios do budismo, meus amigos balançaram a cabeça e me disseram que eu não era mianmarense.
Fico feliz por não terem dito que eu não era um budista.
Texto de Swe Win, para o International Herald Tribune, reproduzido no UOL. Tradução de George El Khouri Andolfato.
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