segunda-feira, 29 de abril de 2013

Entrevistas marcantes: Eco e a leitura


erudito na era da informática
Umberto Eco realmente dispensa apresentação. Em todo caso, vale dizer que ele, osábio italiano nascido no Piemonte, em 5 de janeiro de 1932, professor de Semiologia na Universidade de Bolohna, autor do clássico Tratado de Semiótica Geral e dos best-sellers O Nome da Rosa e O Pêndulo de Foucault, foi escolhido para brilhar no Colégio da França, a prestigiosa instituição parisiense criada em 1530 e que não organiza exames e nem emite diplomas. Em resumo, existe para estimular a pesquisa pura, o ensino no grau máximo da sofisticação e coroar a carreira dos eruditos. Na aula inaugural, no dia 2 de outubro de 1992, compareceram ao tradicional rito acadêmico o poderoso ministro da Educação e Cultura da França, Jack Lang, e ilustres jornalistas culturais como Bernard Pivot. Chamado a falar durante quatro meses sobre A Procura de uma Língua Perfeita na Cultura Européia, o mestre viajou da cabala ao esperanto passando pelas reflexões de Dante, Descartes, Wilkins, Raymond Lulle, Porfírio e mais uma infinidade de filosofias, teologias, seitas e códigos secretos. Um voo absoluto no reino da fascinação intelectual. Um mergulho soberano na erudição. Um jogo de livre-associação que só poderia ser superado por um computador programado para estabelecer relações lógicas (e certamente inúteis) a partir do patrimônio cultural da humanidade. Abençoado pelo frio do outono, Eco concedeu esta entrevista. Vertiginoso, aceitou colocar tudo no devido lugar e precisou, outra vez, o papel dos meios de comunicação de massa, a função do erudito, o valor da literatura e, acima de tudo, as características da civilização da informática (segui o seu curso do primeiro ao último dia)
JMS – O senhor mescla erudição e meios de comunicação de massa com perfeição. Trata-se da mistura da cultura considerada legítima com o brilho da mídia ainda menosprezada pelos intelectuais. Como analisar o papel das imagens no mundo atual? Crise da modernidade e ameaça de uma nova barbárie ou expansão comunicacional democratizante ?
Umberto Eco. Uma pesquisa recente, publicada na Inglaterra, demonstra que hoje os jovens leem mais do que os seus pais. Conclusão: a geração da televisão e do computador é ainda encorajada a ler, mais do que em relação às gerações precedentes. Com todos os seus defeitos, é evidente que a civilização dos meios de comunicação de massa faz circular a informação, mesmo superficial, e a informação estimula a necessidade de conhecimento. Portanto, a superficialidade da mídia empurra a juventude a buscar experiências mais profundas e satisfatórias. Na década de sessenta, McLuhan podia anunciar o fim da civilização alfabética e o nascimento do poder da aldeia global. Hoje, entretanto, as telas de computador não mostram imagens, mas textos. Estamos prestes a entrar em uma nova galáxia Gutenberg. A leitura das informações informatizadas esbarra na ausência de aprofundamento, claro. Em todo caso, estou seguro, depois de três horas na frente de um computador, explode a vontade de ler um bom livro. A escrita não perdeu a guerra para a audiovisual. Ao contrário, ela está face à vitória absoluta.
JMS – Erudito e apaixonado pela informática, o senhor associa o sábio do passado, que armazenava informações extraordinárias na memória, e o intelectual da era pós-industrial, ligado aos bancos de dados internacionais. Não o assusta, em uma espécie de ficção científica com forte tendência à realidade, a possibilidade de ser secundarizado pelo cérebro artificial? Dito de outra forma: qual é a função do intelectual ao final do século XX?
Eco – O computador é um instrumento como o eram as fichas dos intelectuais de antigamente. O erudito antigo passava incontáveis dias a pesquisar informações bibliográficas que hoje podem ser manipuladas em segundos a partir de arquivos eletrônicos. Neste sentido, o computador faz simplesmente uma parte do trabalho mecânico que os eruditos do passado eram obrigados a realizar. A fotocópia, no mesmo sentido, permite ganhar o tempo outrora dedicado à cópia dos textos. Na verdade, eu me irrito um pouco com o excesso de informação erudita produzida pelos arquivos eletrônicos. Temo que a abundância possa matar a informação relevante. Se eu vou levantar dados em uma biblioteca, trabalho um dia e adquiro o conhecimento de cerca de trinta livros, dos quais me lembrarei. Mas se aperto um botão e surgem, sobre o mesmo assunto, dez mil títulos, ficarei, em razão da quantidade, impossibilitado de reter as obras verdadeiramente importantes. Do ponto de vista da escrita, pretende-se que o computador é hemingwayniano, frases curtas e secas. Erro: ele é proustiano e favorece a repercussão de todas as contradições. Logo, em face dos novos meios, incontornáveis, os eruditos devem aprender uma nova disciplina de pesquisa.
JMS – Em um texto de 1967, o senhor falava da guerrilha da mídia e questionava-se sobre o verdadeiro sujeito criador das ideologias ou dos costumes, modas e valores. Ainda é pertinente dissertar sobre a potência absoluta dos meios de comunicação de massa, sobretudo da televisão, ou os intelectuais de esquerda, no Brasil, por exemplo, agarram-se a uma análise esclerosada quando denunciam o poder da Rede Globo de fazer e desfazer a realidade ?
Eco – Devemos considerar, mais uma vez, os efeitos da abundância: uma só rede de televisão pode influir sobre as ideias dos telespectadores. Mas quando o mesmo telespectador é submetido a dez redes e viaja entre elas, o que ele absorve é o ruído. Neste caso, a influência da mídia anula-se em vez de crescer e a independência é favorecida. Em um plebiscito recente, na Itália, os grandes partidos e os meios de comunicação que os representavam ou contrariavam resolveram silenciar de modo a estimular a abstenção. A maioria dos italianos, contudo, compareceu às urnas e votou pelo sim. A população tinha aceitado o chamado dos meios menores e rejeitado o comando das grandes cadeias. Existem, de fato, os espaços de escolha e as margens de manobra. Eu condeno a idéia maniqueísta dos falsos intelectuais que consideram a escrita representativa do bem e a imagem como o mal.
JMS – Poder-se-ia imaginar que os meios de comunicação de massa são detentores de poderes absolutos no Terceiro Mundo e domesticados nos países desenvolvidos?
Eco – Para o Terceiro Mundo talvez a situação seja diferente, justamente porque não há possibilidade de escolha entre diferentes mensagens de mídia. Mas é preciso não esquecer que muitos países trabalharam para aumentar o índice de alfabetização, fator positivo, e elevaram a barreira contra a homogeneização midíatica. Precisamos, o que é mais importante, parar de pensar em universos compostos apenas pelos meios de comunicação de massa. As sociedades são plurais. Nos Estados Unidos, Ross Perot comprou enormes espaços na mídia. Clinton optou pelas equipes de jovens voluntários que estabeleceram contatos corpo a corpo. Qual foi o resultado? Se os meios de comunicação de massa fossem mesmo possuidores de todo o poder, Perot teria vencido. O tecido social, felizmente, é articulado de modo plural.
JMS – Houve o tempo do estruturalismo, da linguística, da semiótica, da semiologia e dos mestres da área, entre os quais Umberto Eco. Eram modas? Passado o período de febre, qual o balanço possível?
Eco – Sempre acontece de certas disciplinas ou correntes artísticas gerarem sua própria moda. Depois, passado o apogeu, vencida a moda, resta a pesquisa. Necessitamos julgar as investigações, não as aparências. Ultrapassamos a época em que um movimento destruía o anterior, de acordo com uma visão hegeliana da história. O que caracteriza a nossa civilização é o entrelaçamento da televisão com o cinema, a imprensa, os Beatles, Stockhausen e a literatura. Inventaram o termo pós-modernidade para o que eu prefiro chamar de poliglotismo generalizado da cultura. Em síntese, prevalece a convivência.
JMS – O senhor escreveu romances que se transformaram em best-sellers. O Pêndulo de Foucault, paradoxalmente, é ilegível pelo menos até a página 27.Houve um projeto deliberado de construção literária hermética? O senhor buscou um estilo inacessível ?
Eco - Eu digo com frequência que o meu leitor ideal deve ganhar o prazer da leitura com esforço, como se ganha o prazer da paisagem escalando a montanha. O fato de que os meus romances, escritos a partir da violação de todas as regras dobest-seller, transformem-se em fenômenos de vendagem prova que os leitores são mais exigentes do que acreditam os meios de comunicação de massa.
JMS – O Pêndulo de Foucault é uma critica das utopias clássicas, do poder, da razão absoluta e do marxismo Existe uma passagem em que uma brasileira, ex-estudante de sociologia em Paris, marxista, participa de uma sessão de candomblé. Trata-se da caricatura dá queda do materialismo diante do misticismo exótico ?
Eco – O episódio brasileiro do Pêndulo é uma parábola do que se passará com os meus personagens na Europa. Sim, eu pensei na crise do imaginário de maio de 68 e nisto que se chama de retorno do sagrado da parte de uma geração em crise de identidade. Mas este retorno não foi, na maioria dos casos, uma volta a teologias ou a filosofias. Retornou-se ao sagrado massificado, produto com o selo dos mercadores do absoluto. A literatura, em todo caso, resiste. Eu passei minha vida a colecionar livros antigos e a escrever livros novos. Sinto-me mal dentro deste tempo e só posso experimentar compreendê-Io , escrevendo, para fugir ao mal-estar.
JMS – Em vez de conflito entre cultura visual e cultura da leitura, o senhor prefere, de toda maneira, pensar em termos de integração?
Eco – O senhor falou no sucesso dos meus romances. No século XIX, certamente, eu teria conseguido um número menor de leitores, mesmo em proporção à população mundial da época. E então? Vê-se muito a televisão, constata-se a força da civilização da visão e esquece-se que há uma civilização da leitura em marcha. Ela não desapareceu. Ao contrário, expressa-se na sede de narrativas e na procura de jornais, de novelas de televisão, do cinema e dos livros. Reina o desejo da narrativa.
JMS – Mergulhado em viagens, conferências e cursos no exterior a rotina de um erudito célebre, o senhor encontra ainda tempo para a leitura?
Eco – Eu tenho cada vez menos tempo para ler livros. O problema mais grave para um sábio na atualidade é a enorme produção de preprints, os textos, inventários de pesquisa, que chegam antes da publicação. A relação de trocas científica passa-se, agora, através desses textos, verdadeira indústria anterior às edições. Quando uma pesquisa é publicada como livro, em geral, ela já está caduca.
Novembro de 1992 (republicado em O pensamento do fim do século (L&PM)

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