Um conflito marcado pela cegueira
Um apelo à ONU é a reviravolta mais recente na história
Um apelo à ONU é a reviravolta mais recente na história
Bellagio, Itália
Em 1907 o educador sionista Yitzhak Epstein publicou um artigo intitulado "A Questão Oculta", sobre o conflito nacional que ganhava forma na Terra Santa entre o sionismo e os árabes. "Nós nos esquecemos de uma pequena questão", ele observou. "Existe em nossa terra amada uma nação inteira que a ocupa há centenas de anos e nunca pensou em deixá-la."
Epstein acrescentou que "o árabe, como todo homem, está ligado a sua terra nativa por laços fortes".
Na época, o nacionalismo árabe palestino era algo apenas esboçado; foi forjado no cadinho do conflito, primeiro com um número crescente de imigrantes judeus e depois com o Estado de Israel. Mahmoud Abbas, o líder palestino, se permitiu uma licença poética recentemente ao falar perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, quando descreveu a terra na qual Israel emergiu em 1948 como sendo "uma sociedade vibrante e coesa" que contribuía para "o renascimento cultural, educacional e econômico do Oriente Médio árabe".
Não -era uma sociedade atrasada, dividida, tênue, enfraquecida por um domínio imperial prolongado e pelo confronto com o sionismo. Mesmo assim, como Epstein havia observado, os palestinos estavam lá, cerca de 1,3 milhão deles em 1948, e, 63 anos depois, o quebra-cabeças de como forjar um Estado palestino lado a lado com Israel seguro continua sem solução. O pedido formal formulado por Abbas para que o Conselho de Segurança da ONU reconheça um Estado palestino nas fronteiras de 1967 -pedido que, se for preciso, será vetado pelos EUA- é apenas a novidade mais recente na história.
Essa história vem sendo marcada pela cegueira -a cegueira dos judeus, que não enxergaram a presença palestina, dos palestinos diante da ligação milenar do povo judaico à terra de sua origem, de mediadores bem intencionados que não se dão conta das paixões envolvidas no confronto. Se quisermos que o conflito seja resolvido, será apenas com base na superação da cegueira e de um compromisso consciente com um futuro compartilhado. Depois de tanto sangue derramado, é possível que isso seja pedir demais.
Eu disse que Abbas enfeitou a Terra Santa de 1948. Mas seu discurso incluiu muito que é admirável: o compromisso assumido com "relações cooperativas baseadas na paridade e igualdade entre dois Estados vizinhos -Palestina e Israel"; o resumo das reformas notáveis na Cisjordânia que trouxeram nova responsabilidade e transparência e levaram várias instituições internacionais a dizer que a criação do Estado palestino agora é viável; a descrição precisa de como a ampliação dos assentamentos israelenses enfraquece esses esforços; a adesão inequívoca a métodos pacíficos; a declaração de que "nossos esforços não visam isolar ou deslegitimar Israel", e a vinculação da Primavera Árabe com as aspirações palestinas de democracia e dignidade.
Contrastando com isso, Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelense, estava jogando. Ele repisou várias vezes sua obsessão: que os palestinos reconheçam o "Estado judaico" de Israel. A Organização para a Libertação da Palestina reconheceu em 1993 "o direito do Estado de Israel de existir em paz e segurança", reconhecimento esse que não recebeu recíproca com declaração do mesmo teor (Israel reconheceu a OLP como "representante do povo palestino"). São reconhecidos Estados, e não a natureza deles.
Netanyahu teve muitíssimo a dizer sobre o islã militante, mas quase nada sobre como milhões de árabes vêm se sublevando para reivindicar a própria democracia e vigência da lei que o islã militante nega. Ele procurou fazer uma caricatura grotesca do Líbano -uma democracia muito imperfeita mas, mesmo assim, uma democracia-, sugerindo que, pelo fato de o Líbano presidir o Conselho de Segurança, "uma organização terrorista" -o Hezbollah- "preside sobre o organismo encarregado de garantir a segurança do mundo". Ele não teve nada a dizer sobre a reforma palestina. Sugeriu que os assentamentos são uma questão secundária. Em suma, Netanyahu enfraqueceu seus próprios argumentos em favor das necessidades de segurança de Israel e cedeu à cegueira da qual Epstein falou, um século atrás.
Quanto a Barack Obama, ele fez o discurso de um presidente dos Estados Unidos no início de um ano eleitoral, mencionando o Holocausto e a angústia dos cidadãos israelenses atacados por foguetes, mas sem uma palavra sequer para o sofrimento, a humilhação e as mortes de palestinos sob a ocupação israelense. A disparidade entre os elogios que fez à Primavera Árabe e a evocação pálida das mesmas aspirações entre palestinos foi flagrante.
Enquanto isso, os fatos em si continuam iguais, na região. Líderes corajosos precisam falar a verdade sobre os fatos para que seja possível avançar.
Epstein acrescentou que "o árabe, como todo homem, está ligado a sua terra nativa por laços fortes".
Na época, o nacionalismo árabe palestino era algo apenas esboçado; foi forjado no cadinho do conflito, primeiro com um número crescente de imigrantes judeus e depois com o Estado de Israel. Mahmoud Abbas, o líder palestino, se permitiu uma licença poética recentemente ao falar perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, quando descreveu a terra na qual Israel emergiu em 1948 como sendo "uma sociedade vibrante e coesa" que contribuía para "o renascimento cultural, educacional e econômico do Oriente Médio árabe".
Não -era uma sociedade atrasada, dividida, tênue, enfraquecida por um domínio imperial prolongado e pelo confronto com o sionismo. Mesmo assim, como Epstein havia observado, os palestinos estavam lá, cerca de 1,3 milhão deles em 1948, e, 63 anos depois, o quebra-cabeças de como forjar um Estado palestino lado a lado com Israel seguro continua sem solução. O pedido formal formulado por Abbas para que o Conselho de Segurança da ONU reconheça um Estado palestino nas fronteiras de 1967 -pedido que, se for preciso, será vetado pelos EUA- é apenas a novidade mais recente na história.
Essa história vem sendo marcada pela cegueira -a cegueira dos judeus, que não enxergaram a presença palestina, dos palestinos diante da ligação milenar do povo judaico à terra de sua origem, de mediadores bem intencionados que não se dão conta das paixões envolvidas no confronto. Se quisermos que o conflito seja resolvido, será apenas com base na superação da cegueira e de um compromisso consciente com um futuro compartilhado. Depois de tanto sangue derramado, é possível que isso seja pedir demais.
Eu disse que Abbas enfeitou a Terra Santa de 1948. Mas seu discurso incluiu muito que é admirável: o compromisso assumido com "relações cooperativas baseadas na paridade e igualdade entre dois Estados vizinhos -Palestina e Israel"; o resumo das reformas notáveis na Cisjordânia que trouxeram nova responsabilidade e transparência e levaram várias instituições internacionais a dizer que a criação do Estado palestino agora é viável; a descrição precisa de como a ampliação dos assentamentos israelenses enfraquece esses esforços; a adesão inequívoca a métodos pacíficos; a declaração de que "nossos esforços não visam isolar ou deslegitimar Israel", e a vinculação da Primavera Árabe com as aspirações palestinas de democracia e dignidade.
Contrastando com isso, Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelense, estava jogando. Ele repisou várias vezes sua obsessão: que os palestinos reconheçam o "Estado judaico" de Israel. A Organização para a Libertação da Palestina reconheceu em 1993 "o direito do Estado de Israel de existir em paz e segurança", reconhecimento esse que não recebeu recíproca com declaração do mesmo teor (Israel reconheceu a OLP como "representante do povo palestino"). São reconhecidos Estados, e não a natureza deles.
Netanyahu teve muitíssimo a dizer sobre o islã militante, mas quase nada sobre como milhões de árabes vêm se sublevando para reivindicar a própria democracia e vigência da lei que o islã militante nega. Ele procurou fazer uma caricatura grotesca do Líbano -uma democracia muito imperfeita mas, mesmo assim, uma democracia-, sugerindo que, pelo fato de o Líbano presidir o Conselho de Segurança, "uma organização terrorista" -o Hezbollah- "preside sobre o organismo encarregado de garantir a segurança do mundo". Ele não teve nada a dizer sobre a reforma palestina. Sugeriu que os assentamentos são uma questão secundária. Em suma, Netanyahu enfraqueceu seus próprios argumentos em favor das necessidades de segurança de Israel e cedeu à cegueira da qual Epstein falou, um século atrás.
Quanto a Barack Obama, ele fez o discurso de um presidente dos Estados Unidos no início de um ano eleitoral, mencionando o Holocausto e a angústia dos cidadãos israelenses atacados por foguetes, mas sem uma palavra sequer para o sofrimento, a humilhação e as mortes de palestinos sob a ocupação israelense. A disparidade entre os elogios que fez à Primavera Árabe e a evocação pálida das mesmas aspirações entre palestinos foi flagrante.
Enquanto isso, os fatos em si continuam iguais, na região. Líderes corajosos precisam falar a verdade sobre os fatos para que seja possível avançar.
Texto de Roger Cohen, no The New York Times, reproduzido na Folha de São Paulo, de 3 de outubro de 2011.
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