Plano Pasárgada
Alguns amigos passaram recentemente pelos sustos de saúde típicos de quem está na faixa dos 50 anos. Aquele calorzinho discreto no peito, na hora da esteira ergométrica, termina em operação de safena. Uma dor estranha em todos os dentes (nunca tinha ouvido falar disso) pode ser também sinal de enfarte.
Ainda que fazer uma cirurgia cardíaca esteja longe de ser um passeio à Disneylândia (não sei qual dos dois prefiro), a técnica parece ter avançado muitíssimo.
Pelo menos, ao visitar esses amigos no hospital, um dia depois da operação, encontrei-os lépidos, eufóricos, mais jovens do que antes.
Algo semelhante ocorreu comigo, com uma ou duas intervenções cirúrgicas a que me submeti. Numa delas, tudo pareceu tão fácil, tão preciso, tão "eletrônico", que minha vontade era de rir.
Seria efeito da anestesia? Acordado o tempo todo, eu via meu coração ampliado na tela, espécie de aranha selvagem, caranguejeira aos botes, recebendo o "stent" que o deixaria novinho em folha.
Uma dose de bom humor forçado e a alegria real por ter escapado da morte se misturam nesse estado pós-operatório. É a primeira fase. A segunda consiste nos planos de nova vida; os "planos Pasárgada", por assim dizer. "E como farei ginástica/ Andarei de bicicleta/ Montarei em burro brabo,/ Subirei no pau de sebo/ Tomarei banhos de mar!", diz o poema de Manuel Bandeira.
Dali a alguns meses, encontro os amigos numa festa ou num jantar. Estão ainda eufóricos; mas não é o efeito da anestesia que perdura. Provavelmente, seu estado de espírito se deve a algumas doses de bebida a mais.
Regra geral, ninguém emagreceu. Quem fumava ainda fuma, quem bebe não se afastou do copo, quem ia morar numa chácara continua preso no trânsito da Paulista.
É a terceira fase, na qual recaem quase todos, e onde encontram, por vezes, uma ou outra sombra de fracasso e depressão. Ignoro se há estatísticas a esse respeito. Sei, por mim mesmo, que mudar de vida nunca é fácil. É quase impossível, para dizer a verdade. Mas talvez o fenômeno não se deva apenas à força dos hábitos adquiridos, do próprio temperamento, do autoengano. Acho que existe, também, uma dimensão "existencial" nesse desleixo.
Confrontado com a cirurgia, o paciente já não tem a própria vida em suas mãos. Depende dos médicos, da sorte, do que vier a acontecer.
Durante algumas horas, ainda mais se a anestesia é geral, nosso amigo deixou de existir como sujeito; tornou-se objeto, coisa, campo de manobras do cateter e do bisturi.
Sua inconsciência não é semelhante à do sono de todas as noites. Acordar, bem ou mal, envolve um mínimo gesto de vontade própria. Sair de uma operação é diferente. Devolveram-lhe a vida; ei-la, agora é com você, faça dela o que quiser.
Há algo de muito especial nessa situação; nenhum esforço extremo de meditação, imagino, pode reproduzir a ideia básica por trás dela. A saber, a de que você é uma coisa e que sua vida é outra coisa, bem diferente. Sua vida, que era você mesmo, tornou-se agora um objeto, que você perde ou recupera. Um intervalo, uma distância, criou-se entre o ser vivo e a vida que ele tem.
Daí se explica, creio eu, tanto a vontade de fazer alguma coisa nova com a velha vida, como também a vontade de vivê-la exatamente do mesmo modo com que sempre foi vivida. Os anos à minha frente? Serão melhores, mais produtivos, mais saudáveis. Não, nada disso, responde o velho eu. O que querem fazer de mim? Não basta terem quase me levado ao túmulo?
Reafirmo meus velhos hábitos, meu gosto por cerveja e torresminho, minha carreira na Bolsa de Valores. Tomo posse, mais uma vez, de tudo o que tentaram me tirar.
Que tolice, responde a outra voz. Você não aprendeu a lição? Quer morrer da próxima vez? O recém-operado não se convence. Argumenta que já quase morreu na operação; e, afinal, a experiência não foi tão assustadora assim, depois de ter passado.
A vida dele está de volta: viu perfeitamente o valor que ela tinha; não era, pensando bem, um valor tão alto assim. Pode ser trocado, com vantagem, por um pouco mais de torresmo, de cerveja, de trânsito, de rotina, desde que se leve tudo isso em boa companhia. A companhia do seu velho eu, dos seus velhos erros, amigos de quem não quer se despedir.
Ainda que fazer uma cirurgia cardíaca esteja longe de ser um passeio à Disneylândia (não sei qual dos dois prefiro), a técnica parece ter avançado muitíssimo.
Pelo menos, ao visitar esses amigos no hospital, um dia depois da operação, encontrei-os lépidos, eufóricos, mais jovens do que antes.
Algo semelhante ocorreu comigo, com uma ou duas intervenções cirúrgicas a que me submeti. Numa delas, tudo pareceu tão fácil, tão preciso, tão "eletrônico", que minha vontade era de rir.
Seria efeito da anestesia? Acordado o tempo todo, eu via meu coração ampliado na tela, espécie de aranha selvagem, caranguejeira aos botes, recebendo o "stent" que o deixaria novinho em folha.
Uma dose de bom humor forçado e a alegria real por ter escapado da morte se misturam nesse estado pós-operatório. É a primeira fase. A segunda consiste nos planos de nova vida; os "planos Pasárgada", por assim dizer. "E como farei ginástica/ Andarei de bicicleta/ Montarei em burro brabo,/ Subirei no pau de sebo/ Tomarei banhos de mar!", diz o poema de Manuel Bandeira.
Dali a alguns meses, encontro os amigos numa festa ou num jantar. Estão ainda eufóricos; mas não é o efeito da anestesia que perdura. Provavelmente, seu estado de espírito se deve a algumas doses de bebida a mais.
Regra geral, ninguém emagreceu. Quem fumava ainda fuma, quem bebe não se afastou do copo, quem ia morar numa chácara continua preso no trânsito da Paulista.
É a terceira fase, na qual recaem quase todos, e onde encontram, por vezes, uma ou outra sombra de fracasso e depressão. Ignoro se há estatísticas a esse respeito. Sei, por mim mesmo, que mudar de vida nunca é fácil. É quase impossível, para dizer a verdade. Mas talvez o fenômeno não se deva apenas à força dos hábitos adquiridos, do próprio temperamento, do autoengano. Acho que existe, também, uma dimensão "existencial" nesse desleixo.
Confrontado com a cirurgia, o paciente já não tem a própria vida em suas mãos. Depende dos médicos, da sorte, do que vier a acontecer.
Durante algumas horas, ainda mais se a anestesia é geral, nosso amigo deixou de existir como sujeito; tornou-se objeto, coisa, campo de manobras do cateter e do bisturi.
Sua inconsciência não é semelhante à do sono de todas as noites. Acordar, bem ou mal, envolve um mínimo gesto de vontade própria. Sair de uma operação é diferente. Devolveram-lhe a vida; ei-la, agora é com você, faça dela o que quiser.
Há algo de muito especial nessa situação; nenhum esforço extremo de meditação, imagino, pode reproduzir a ideia básica por trás dela. A saber, a de que você é uma coisa e que sua vida é outra coisa, bem diferente. Sua vida, que era você mesmo, tornou-se agora um objeto, que você perde ou recupera. Um intervalo, uma distância, criou-se entre o ser vivo e a vida que ele tem.
Daí se explica, creio eu, tanto a vontade de fazer alguma coisa nova com a velha vida, como também a vontade de vivê-la exatamente do mesmo modo com que sempre foi vivida. Os anos à minha frente? Serão melhores, mais produtivos, mais saudáveis. Não, nada disso, responde o velho eu. O que querem fazer de mim? Não basta terem quase me levado ao túmulo?
Reafirmo meus velhos hábitos, meu gosto por cerveja e torresminho, minha carreira na Bolsa de Valores. Tomo posse, mais uma vez, de tudo o que tentaram me tirar.
Que tolice, responde a outra voz. Você não aprendeu a lição? Quer morrer da próxima vez? O recém-operado não se convence. Argumenta que já quase morreu na operação; e, afinal, a experiência não foi tão assustadora assim, depois de ter passado.
A vida dele está de volta: viu perfeitamente o valor que ela tinha; não era, pensando bem, um valor tão alto assim. Pode ser trocado, com vantagem, por um pouco mais de torresmo, de cerveja, de trânsito, de rotina, desde que se leve tudo isso em boa companhia. A companhia do seu velho eu, dos seus velhos erros, amigos de quem não quer se despedir.
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